O personagem é o que o personagem faz
Sobre decisões, choros, tornozelos, barafundas e gambiarras da escrita, e sobre um livro que andei habitando e do qual nem sei se já saí
Brasilien Primavera
Eu moro na Alemanha, na cidade de Köln (Colônia). “Filterkaffee” é café coado, é o que peço quase todo dia de manhã na cafeteria onde vou para ler e escrever, e agora também para fazer esta newsletter. Mas uma newsletter sobre o quê?
Dá vontade de dizer que é sobre tudo e sobre nada, mas seria mentira. É sobre umas coisas mais do que sobre outras, vai ter algumas coisas mais do que outras.
O que o personagem faz
No começo eu dizia, "tô morando na Alemanha". Levou um tempo para abandonar esse gerúndio. Hoje eu digo, "eu moro na Alemanha". Aí me perguntam, "pra sempre?". Pra sempre é um tempão, respondo que não sei, respondo talvez. Tudo ou quase tudo é o jeito como se montam as frases. Porque se me perguntam, "você não vai voltar?", eu respondo que não. De certa forma, é a mesma pergunta, não é? Talvez seja, mas não dou a mesma resposta.
Pouca coisa se aprende com os livros sobre roteiro, e quem está falando aqui é um cara que leu quase todos. Pouca coisa se aprende que seja útil para escrever roteiro, menos ainda algo que sirva pra vida. Mas uma coisa eu aprendi com eles e que é muito importante:
O personagem é o que o personagem faz.
Isso vale para dramaturgia. É decisivo, na dramaturgia. E vale para as pessoas à nossa volta. Vale até para entender a gente mesmo. Um dia, quando eu já estava aqui há uns seis meses, cancelei meu plano de saúde no Brasil. Ali eu passei, mesmo que ainda sem perceber, do gerúndio, do "estou morando", para "eu moro". Não sabia, mas aquilo era plot point na minha história.
O tornozelo da jovem mãe
Tive sorte hoje, peguei meu lugar favorito no café. Uma poltrona no canto, se olho para a direita vejo a rua e as mesas na calçada. Se olho para a esquerda, vejo o balcão do café e um pouco do movimento de dentro. É quando olho para a esquerda que noto a jovem mãe às voltas com carrinho, criança no carrinho, coisas da criança, pedido no balcão, bolo, café, um movimento constante de agachar-se, levantar-se, agachar-se de novo, as mãos não sossegam nunca com tudo que a situação demanda.
Ela dá atenção a mais coisas naqueles segundos do que eu sou capaz de dar numa manhã. Uma amiga chega, elas encontram um canto, vão conversar, tomar café, mas a criança no carrinho está acordada e há sempre o que fazer, a mãe não para nunca.
A calça preta mais ou menos justa que ela veste está um pouco puxada no tornozelo direito. Mais do que um pouco puxada, pensando bem. Em outra situação, ela teria há muito feito o gesto rápido e quase inconsciente de baixar aquela barra de calça. Mas a jovem mãe não pode desperdiçar um gesto.
Esse é o tipo do detalhe que faz a gente acreditar numa personagem. A falta de tempo é tal que nem dá para ajeitar a barra da calça.
O que faz uma personagem, além do que ela mesma faz, são detalhes quase aleatórios. Talvez aleatórios mesmo. É tirando os olhos do celular e olhando em volta que você acha essa matéria-prima.
Meus dias com Maxine
Passei mais de um mês com Maxine. Café, cama, transporte público, banco no parque à beira do lago, Museu de Arte Asiática, Biergarten, bar… estivemos muito juntos em julho, agosto, Maxine e eu. Agora que ela não está aqui, morro de saudade. Maxine é a protagonista de Bleeding Edge, romance do maximalista Thomas Pynchon.
Não estou exagerando quando falo de saudade.
Não é só de Maxine, a saudade. O livro é tão imenso, em todos os sentidos, que parece um lugar onde estive, e de onde não queria muito ter ido embora. Gravei um video falando disso, assim que descobrir como postar video aqui no Substack, eu posto e aviso.
Choro
A imagem acima é do último capítulo da série documental “Sophie, a murder in West Cork”. O homem na imagem acaba de contar como uma criança, vinte anos atrás, lhe pediu ajuda porque um homem havia espancado sua mãe, e como ele vê o olhar daquela criança até hoje. O homem tem vontade de chorar e luta para conter o choro. É a luta para conter o choro que torna a cena comovente.
Em “Jogo de Cena”, do Eduardo Coutinho, Marília Pera fala de como se espanta de que os atores e atrizes hoje em dia chorem em cena deixando as lágrimas escorrerem pela cara, e diz que, quando ela aprendeu a atuar, “o certo” era conter o choro.
Marília estava certa. Quem inclui cenas de choro a torto e a direito nos seus roteiros, está barateando os seus personagens, fazendo deles uns robozinhos emocionais.
Barafunda
Faça isso agora!
Vejo muito por aí, nos diálogos dos roteiros em português, um uso imperativo da palavra “agora”, em geral seguida de ponto de exclamação. Isso vem do inglês. “Do it! do it now!”. Só que não tem o mesmo efeito. “Now” é um soco, é breve e forte. “Agora” são três sílabas molengas perdidas no espaço.Uninfluencer
Não tenho nem nunca vou ter um milhão de seguidores, essa newsletter nunca vai ter milhares de assinantes. Não escrevo para conquistar seguidores, embora os receba de bom grado: escrevo porque gosto e, se tiver sorte, para conversar com alguém, quem sabe até mesmo você.Reparou como não usei “eu” no parágrafo acima nenhuma vez? Nem toda língua permite isso. Aproveita.
Polissílabas
Gosto das palavras brasileiras de muitas sílabas, como barafunda, que parece que dá voltas na boca antes de se formar por completo. O alemão, como se sabe, é a língua por excelência das polissílabas. Na verdade, multissílabas, pan-sílabas. Palavras que parece que não vão acabar nunca. Só que elas na verdade se pronunciam como várias palavras, e não de um fôlego só. As nossas são mais modestas em sílabas, mas talvez mais divertidas de soprar pela boca, porque cabem num sopro só. Barafunda, gambiarra, traquitana.
Gambiarra
Eu tenho um fetiche, gosto de escrever escutando barulho de máquina de escrever. Alguns apps têm esse recurso. Eu meto uns fones na orelha, desses com supressão de ruído ambiente, e escrevo com o batuque da máquina bem dentro da minha cabeça, sincronizado, é claro, com o que escrevo.
O único app de roteiro que tem esse recurso é o Story Architect, que recomendo por este e outros motivos. É um ótimo app. Isso aqui estou escrevendo no Calmly, um app super leve, simples, voltado para quem quer uma parada “distractions free”. Ele também faz barulhinho de máquina. Já escrevi pro pessoal do Final Draft sugerindo que eles incluíssem esse recurso. Admiti que podia ser um pedido “foolish”. Educados, eles responderam que a sugestão não era “foolish” e disseram que iam pensar no assunto.
Finalmente
Comecei essa newsletter me impondo um limite: não escrever nem um único advérbio de modo. Não sei se você sabe, mas os advérbios de modo são quase sempre umas ervas daninhas que você pode cortar sem dó.
Por exemplo, a frase anterior poderia ter sido: “os advérbios de modo são quase sempre umas ervas daninhas que você pode facilmente cortar.” Percebe como a versão anterior é mais forte? Nesse caso, “sem dó” substitui o advérbio. Sempre há algo para substituir o advérbio. Sempre. Mas você pode só cortar o maldito e pronto.
Por hoje, é isso. Quer comentar, perguntar? fica à vontade. Se gostou e quiser divulgar, agradeço muito. E agora te deixo com a Elza Soares, essa personagem maior que nós todos…
Amei a newsletter! Me transportou para a cafeteria, me fez sentir “cúmplice” dos atos da mulher e me me fez vibrar com a arte de ser roteirista!
adorei a observação sobre o advérbio! Muito útil!