A dança da escrita
Por que é que uma personagem não é uma pessoa, e autores e leitores dançando no tempo
No café Heilandt, lendo “Púbis Angelical”, do Manuel Puig, de repente penso que o que estou lendo, aquela página, cada sílaba, todas as letras, uma por uma Puig as escreveu através de um movimento real do seu corpo, mãos, dedos, fosse datilografando ou escrevendo a lápis, a caneta. Por mais abstrato que o ato de escrever pareça ser, na verdade ele é uma ação do corpo.
E, quando lemos, nos ligamos a esse movimento feito lá longe no tempo e no espaço. Ler também é físico. Nem que seja o discreto movimento dos olhos, que exige que os pequenos músculos oculares trabalhem. Há esforço também no segurar o livro, passar as páginas. Há o ajeitar-se na cadeira, poltrona, cama, canga, onde quer que se leia, assento do avião, mesa do café.
Como se houvesse a transmissão de uma energia cinética: os movimentos do autor, desidratados na tinta seca das páginas, reencarnam nos movimentos de quem lê. Estamos juntos, quem escreve e quem lê, muito mais do que se pensa.
O livro, então, é como uma bateria. Ali fica guardada uma reserva de movimento que a gente aciona na leitura. Como se fosse uma dança. Mínima, discreta, talvez modesta, muito íntima, invisível, mas ainda assim uma dança.
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
Pessoa, personagem
Um personagem não é uma pessoa. Uma pessoa não é uma personagem. Duas distinções fundamentais para quem escreve. Mas há uma situação, uma twilight zone, em que se é ao mesmo tempo pessoa e personagem.
A zona de sombra entre personagem e pessoa é um momento como esse em que escrevo a newsletter, em que escrevo na primeira pessoa, para alguém ler, dizendo que quem escreve sou eu.
(estou pensando em voz alta, desculpe eventuais imprecisões, indecisões, contradições ou mesmo absurdos)
Se escrevo ficção em primeira pessoa e batizo esse eu narrador de alguma forma (“Call me Ishmael…”), esse narrador tende a se constituir em personagem, quer o autor deseje isso ou não, mesmo que nem chegue a lhe dar um nome. Desde que não lhe dê o seu nome.
Mas se digo que sou eu, mesmo que nem sequer seja ficção, mesmo que num post de rede social com foto de prato de comida, é inevitável que aquele post mínimo seja ficção. É aí que pessoa e personagem se confundem. Não, se confundem, não. Mesclam-se.
Tá confuso? Vou tentar de novo. Não, vou tentar outra coisa. No fundo (e na superfície), estou tentando resolver um problema que me aflige em algo que estou escrevendo. Mas, vamos lá.
A autoficção é inevitável e o documentário é impossível
Se você usa seu nome e conta alguma coisa em primeira pessoa, algum grau de autoficção vai acontecer. Isso aqui que faço, nesse momento, é, em algum nível autoficção, que se dá por causa da sobreposição entre pessoa e personagem que rola na cabeça de quem lê.
O personagem é o David que mora na Alemanha e que escreve e lê em cafés, que faz essa newsletter misturando observações da sua vida de estrangeiro com comentários sobre literatura e cinema e dicas de escrita. O fato de que eu moro mesmo na Alemanha e leio e escrevo em cafés não altera o fato de que isso é uma construção.
É parecido com o problema do documentário. É impossível não-ficcionalizar um documentário. Da mesma forma, eu não consigo não ser um personagem quando escrevo isso aqui, da forma como escrevo isso aqui.
Qual é a importância disso? Não é pouca. Ter consciência da dimensão ficcional do documentário elimina a ambição ingênua e irrealizável de dizer “a verdade” e liberta para dizer “uma verdade”. Ou uma mentira, por que não? Um dos melhores, se não for o melhor, de todos os documentário que eu vi se chama “F for Fake”, do Orson Welles, e é (Welles confessa) um terço mentira.
Desde a autobiografia até as cartas de amor, e talvez acima de tudo nas cartas de amor, todas as formas confessionais e auto-referentes de escrita trazem em si o ímpeto de criar uma personagem, quer você queira, quer não.
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa
Uma personagem tem um propósito dentro de uma história, cumpre uma função numa estrutura. Uma pessoa existe envolta numa rede caótica e descentralizada de circunstâncias. Uma personagem é criada para se dar a conhecer, isto é, escreve-se a personagem para que, através do enredo, ela se revele. Uma pessoa mal se dá a conhecer a si mesma, nem com anos de terapia.
Uma personagem funciona perfeitamente bem com uma ou duas características, se elas forem bem definidas. Ao contrário do que muita gente pensa, para ser “tridimensional”, complexa, uma personagem não precisa (não deve) ser uma árvore-de-Natal de características. Otelo, de Shakespeare, é um dos grandes personagens da dramaturgia, e quem é ele além do complexo de inferioridade, do ciúme?
Uma pessoa é uma barafunda. Uma personagem é foco.
A dama do cachorrinho
Já falei da minha vizinha do café. Uma mulher que vejo sempre aqui, um pouco mais nova que eu, e que de tanto nos vermos já nos cumprimentamos, às vezes comentamos alguma coisa e tal. Não é amizade, pelo menos por enquanto, não é flerte, pelo menos por enquanto, acho que sempre vai ser isso: a convivência simpática num café.
Hoje, ela apareceu com um cachorro. Pequeno, pinta de vira-lata. Meio nervoso. Ela tenta trabalhar, como sempre faz, com o laptop no colo, porque o café não é computer-friendly, as mesas são baixas. Mas o cachorro perturba, uma hora o laptop quase cai.
Por que será que ela trouxe o bicho? Imagino que ela talvez tenha o cão há pouco tempo. Criar uma personagem quase sempre é isso: observar uma situação (imaginada ou não) em que algo parece desequilibrado e se fazer uma pergunta. A história e a personagem vão nascer das respostas que você encontrar para as suas perguntas.
Uma história para mim nasce assim, muitas vezes: por que algo me intriga, eu faço uma pergunta, e a história será a resposta.
Dance with me
Escrever é quase sempre desconfortável. Não é metáfora, falo da parte física mesmo. Mesma posição por longos períodos, teclado cansa, caneta cansa, ruim pro pescoço. Hemingway escrevia em pé e a lápis. Já tentei e às vezes ainda faço (mas não a lápis). Seja como for, isso aqui, como tudo que escrevi, é uma ação do meu corpo. Você, lendo agora, espero que esteja numa posição confortável, que não force demais a vista, que esta seja uma dança legal.
Estou pensando em começar um curso para estudar personagem. Se o tema te interessa, entra em contato respondendo esse email ou pela mensagem direta do app do Substack
2046
“In the mood for love” é o filme perfeito, um dos melhores de todos que eu vi. Mas “2046” é especial pra mim. Seja como for, todas as cenas de todos os filmes de Wong Kar Wai são cenas de dança. Mesmo que não sejam.
Uma pessoa é uma barafunda. Uma personagem é foco. 😂👏🏻
Que lindo ter a chance de dançar com as palavras.