A língua dos amigos
No dia do meu aniversário, quem ganha é você: lêndeas textuais, idiossincrasias, rabos-de-cavalo e a guerra contra os clichês
Hoje, 17 de julho, é meu aniversário. Os jogadores de xadrez tem uma superstição, a de que aniversariantes jogam mal e perdem. Não sei se isso vale para escritores, mas, por via das dúvidas, peço a você um desconto, caso esta edição esteja meio esquisita.
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
A minha língua não é qualquer português
Outro dia, matava saudades de uma amiga querida do jeito que dá esses dias, via chamada de vídeo. Quando me perguntam do que sinto falta no Brasil, sempre digo que é de pessoas que sinto falta, família e amigos.
Às vezes me perguntam se sinto falta de falar português.
Sinto falta sobretudo da língua dos amigos. Não é só português, é um certo português que embute referências implícitas, história em comum, certo senso de humor, o entendimento da ironia implícita aqui e ali, entender o que eu quero dizer quando falo que, diante dos meus jovens alunos europeus, eu me sinto o Akira Kurosawa, ou que a torta de cereja que eu comi outro dia me fez correr “uma lágrima furtiva”.
A língua das personagens
Suas personagens também têm que ter uma língua em comum, e raramente, ou nunca vai ser a sua. Não falo só de vocabulário. Falo de se perceber intimidade pela interação. A menos que suas personagens sejam do mesmo exato nicho linguístico-social que você, elas não podem falar como você e sua turma, então é preciso descobrir a língua delas.
É difícil pra burro isso, mas tem que tentar: escrever de um jeito que pareça que aquelas personagens têm, por trás de cada frase que trocam, toda uma textura de referências em comum.
Friends
Quem é mais diferente de mim, alguém que não fala português mas ri das mesmas besteiras que eu ou alguém que fala português mas não entende quando eu digo que sou um Evandro Mesquita de livraria?
Já tenho amigos aqui na Alemanha (e também em países vizinhos). Gente com quem eu gosto de conversar, rir junto, comentar a onipresença dos rabos-de-cavalo na Eurocopa feminina de futebol entre outros temas pungentes da atualidade.
Uma dessas amigas até costuma ler essa newsletter e leu também meu Sinais vitais. Ela fala português, mas prefere falar inglês comigo ¨to keep the upper hand¨. Eu não ligo, porque sei que com ela falo, em inglês, o mesmo tipo de coisa e mais ou menos do mesmo jeito que falo com meus amigos brasileiros.
A diferença entre uma pessoa e outra é muito maior do que a diferença entre uma cultura e outra.
Em bom português
Já falei que implico com o orgulho besta da palavra saudade. Acho isso piegas e injustificado. Mas já repararam na preciosidade que é ¨torcer¨, no sentido de torcer por um time ou alguém?
Em inglês, você diz que ¨support¨ um time ou você ¨is for¨ um time. Na boa, que fraco, que sem-graça. Quando digo que torço, trago o gesto de torcer: torcer um pano, torcer uma toalha molhada, torcer um pescoço, até. Um gesto aflito e intenso que tem tudo a ver com torcida, com essa aflição.
Tá aí então, torcer, torcida, palavras do português das quais vale a pena se orgulhar.
Contra a torcida
Gosto, então, da palavra torcer, mas a cultura da torcida eu não curto. Levei uma vida para entender isso. Como todo menino da minha geração (e de tantas outras) , fui torcedor furibundo, do Flamengo e da seleção. Em algum momento, já há bastante tempo, me dei conta de que às vezes estava sendo falso quando torcia. Falso comigo mesmo.
O meu problema com torcer não é com torcer, que é em si divertido, mas com ter que torcer por alguém específico por motivos exteriores ao meu desejo. Meu problema com torcer é com ter que torcer. É com a obrigação.
Espera. Antes de continuar nessa linha, um aviso importante. Não estou criticando ninguém nem nada. Se você sente o contrário do que eu sinto, tudo bem. Faz sentido e eu sei o que é essa emoção. Não precisa ir nos comentários dizer que a graça da coisa é torcer ou que não acho certo isso ou aquilo. Estou falando (na verdade, vou falar) de algo que eu sinto, meu, uma idiossincrasia assumida. Então, me deixa, que é meu aniversário.
Clichês da mente e do coração
“…all writing is a campaign against cliché. Not just clichés of the pen but clichés of the mind and clichés of the heart.”
Martin Amis, “The war against cliché”
tradução minha: “…toda escrita é uma batalha contra os clichês. Não apenas clichês da caneta mas também clichês da mente e clichês do coração.”
Tem aulas que a gente não esquece. A aula que tive sobre clichês com o Sérgio Sant’Anna, que foi meu professor na ECO da UFRJ, foi uma dessas. Ele falou sobre pares substantivo-adjetivo que grudaram de tal forma que não fazem mais efeito. Tipo “rio caudaloso”. “Caudaloso” praticamente só se usa para rio (também se usa para certos romances, mas isso é outra história).
No “Sinais vitais” eu me obriguei a usar a cada vez um adjetivo diferente, e não óbvio, para falar do sol (um corpo celeste com o qual tenho uma relação ambígua). “Um sol pragmático das onze da manhã”, por exemplo.
Esses são os clichês da caneta, de que fala o Martin Amis na citação acima. Os clichês do coração e da mente são outros quinhentos. São coisas como “ah, mas uma policial não faria isso” ou “um adolescente não faria aquilo”… A origem desses clichês é anterior à escrita e está na incapacidade da pessoa de ver a realidade de uma forma não óbvia.
Tipo o Galvão Bueno.
Não vai haver um jogo da Alemanha (ou, nesse caso, também da Suécia e os escandinavos em geral) que o Galvão não vá dizer “veja como eles são frios, não se abalam com nada”. Se estiverem perdendo, então, serão “gélidos”. Não importa que você, se prestar atenção, vá ver os jogadores alemães suando sangue em campo, para o Galvão eles seriam glaciais sempre.
O clichê é um filtro que só te devolve da realidade alguma coisa que você já pensa sobre ela. E que, em geral, quase todo mundo pensa sobre ela.
Se você é uma pessoa normal, esse tipo de filtro te leva a viver uma vida besta. Se você é uma pessoa anormal, isto é, alguém que escreve, esses filtros de percepção te levam a escrever porcaria.
Agora, ninguém sobre a face da Terra é livre de cometer qualquer desses clichês, mentais ou textuais. É na revisão, na reescrita, o pente-fino do retrabalho que você caça os malditos, mata entre as unhas e torce para não ter deixado passar nenhuma lêndea.
Achar que é preciso torcer e torcer de um determinado jeito para viver a experiência de um esporte ou que “não tem como não torcer pela seleção” é ser uma espécie de Galvão Bueno da vida real, que não vê outras formas de existência que não as pré-fabricadas.
Sem testosterona e com emoção
O problema é ter que torcer, a priori. Não gosto dos jogadores, acho o técnico um cretino, e, pior de tudo, estão jogando mal, um jogo medíocre. Mas, mesmo reconhecendo isso, devo, neuroticamente, achar que o juiz está roubando o tempo todo e ao mesmo tempo comemorar gol ilegal, e não posso curtir a qualidade do outro time - caso a tenha - não, posso, em última instância, ver com olhos livres (apelando para o clichê oswaldiano) o espetáculo que pode ser um jogo de futebol.
Eu tinha esquecido como futebol era legal, até começar a ver, com minha filha mais nova, uns jogos aqui da Europa. Sem ter por quem torcer (a priori), simplesmente víamos os jogos. E em algum momento torcíamos por alguém. Por quem estava jogando melhor. Por quem estava perdendo, mas lutava de um jeito bacana. Uma época torcemos pela Inglaterra porque o goleiro usava uma roupa verde espalhafatosa e o apelidamos de “o planta”. Era um torcer eletivo e localizado, não menos intenso mas muito menos neurótico.
Está rolando a Eurocopa feminina e estou vendo todos os jogos. Todos. Islândia e Finlândia, torci pela Islândia porque elas tem os nomes mais inacreditáveis e impronunciáveis (Rúnarsdóttir, Sigurdardóttir, Vilhjálmsdóttir…). Torci pela Espanha contra a Bélgica porque queria ver muito gol, e vi (6 a 2). Hoje tem Suécia e Inglaterra. Vou torcer pra quem? Não hora é que vou ver.
O futebol feminino, reparei já desde a Olimpíada (torci muito pelo Brasil contra a Espanha e na final) e mais ainda nessa Eurocopa, parece que flui mais que o masculino. Como se fosse um texto mais fluido, com menos orações subordinadas, digressões, notas de pé-de-página.
Dribles, chutes, faltas, tensão, está tudo lá, mas tem algo de diferente. Concluí que só pode ser a falta de testosterona. Os homens jogando, como em qualquer lugar, parece que estamos sempre querendo provar algo sobre nós mesmos. As mulheres vão lá e jogam.
Futebol proustiano
Em 2019, morando em São Paulo, torci muito e vibrei muito quando o Flamengo ganhou a Libertadores. Estava sozinho em casa, não estava atuando aquilo, não havia nada de social. Era de verdade.
Torcer pelo Flamengo me leva para perto do meu pai e dos meus irmãos. É lembrar, sem precisar lembrar, que íamos ao Maracanã, eu segurando no cinto do meu pai, meus irmãos segurando em mim, para ninguém se perder. No dia do meu aniversário, então, dedico essa newsletter atípica a eles e à minha mãe, que não ia ao Maracanã e, em tese, é tricolor.
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O ponta-de-lança africano
Eu torço mesmo é por Umbabarauma





O aniversário foi seu, mas o presente foi nosso! Que aula esse parágrafo:
"Suas personagens também têm que ter uma língua em comum, e raramente, ou nunca vai ser a sua. Não falo só de vocabulário. Falo de se perceber intimidade pela interação. A menos que suas personagens sejam do mesmo exato nicho linguístico-social que você, elas não podem falar como você e sua turma, então é preciso descobrir a língua delas". 🌼
Parabéns com atraso é um grande clichê.
Mas vale assim mesmo.
Um beijo!