Amizades tóxicas
Na tela, na página, na rua, amizade não é fácil. E mais: subtexto, ressurreição e o olho de quem escreve
Dois caras
Café Heilandt, Sülz, Colônia, Alemanha, nove da manhã. O lugar está cheio, um cara guarda lugar. Meio inconveniente, mas logo chega a pessoa que ele espera.
Um cara, o que chegou antes, podia estar num editorial de moda. O outro parece ter saído direto da cama. Moleton surrado e tudo. O primeiro é o que você imagina que deve ser um jovem alemão rico. O outro podia ser o Big Lebowski.
São amigos, dá pra ver. Não é networking, trabalho. O encontro de dois amigos num lugar público é indisfarçável, inconfundível.
Cine Olho
Fiz algumas oficinas literárias. Todas há menos de cinco anos, isto é, depois que já escrevia como profissional há um bom tempo. Aprendi muito em cada uma delas.
Uma foi com o Marcelino Freire. Acho que foi já no segundo encontro que ele disse: “escreve sobre o que só você viu”.
Isso. Exato.
Pensa que “o que só você viu” pode ser algo que outras pessoas viram também, mas de que você “viu” algo mais, outro ângulo, outro aspecto. Esse olhar é você.
Atenção
Susan Sontag definiu um escritor como “alguém que presta atenção”.
Ao mundo, não às telas.
Escuta, vai pra rua como se estivesse a rodar um documentário com os olhos e os ouvidos. Prestando atenção em cores que você nem sabe o nome.
Anjos tronchos
Uma mulher ressuscita. Não por milagre, mas por contrato. Um conluio entre a receita fiscal e umas corporações sinistras a traz de volta à vida por vinte e uma horas. Um homem a acompanha o tempo todo, um fiscal. A ideia da morte sendo vencida apenas para que a pessoa não possa mentir à receita e às corporações, que sejam esses os anjos da ressurreição, é o achado diabólico de Paulo Scott em sua peça "Crucial Dois Um", publicada pela Cobogó.
Uma astrônoma, um astrofísico, é capaz de calcular a existência de um planeta antes de vê-lo, pelos efeitos da sua existência secreta sobre os corpos celestes visíveis. Antes de ser visto, o tal planeta é uma abstração, mas uma abstração que produz efeitos concretos.
O subtexto é esse planeta. Não se adiciona subtexto a um filme, peça, conto, canção. Retira-se texto, e é na ausência do que se sabe que deveria estar lá que surge - na cabeça de quem lê - o subtexto.
Há o que acontece diante de nós, na peça do Paulo. A relação entre a mulher e o fiscal, de sedução e desconfiança, de uma diferença de classe que não chega a mascarar uma semelhança de origem, e mais que tudo na construção de uma empatia que se dá contra uma resistência.
O que acontece diante de nós, em "Crucial Dois Um", sentimos que é influenciado por muitas outras forças. Da história pessoal daqueles dois, da história social do país que habitam. Não sabemos ao certo o quê. Mas sentimos que existe, e supomos coisas. Esta é a maior qualidade da peça.
Subtexto é a chance que oferecemos a quem lê de entender e supor coisas, dentro de um certo terreno que quem escreve delimita.
Negrito
Grifei, acima, “uma empatia que se dá contra uma resistência”. Grifei porque é importante pra burro. Amizade, empatia, colaboração, lealdade fáceis entre personagens, empatia que não é conquistada na dramaturgia, soa falsa para quem lê.
Sabe por que soa falsa para quem lê? Porque é falsa. A gente sabe que não é assim e que quem escreve está cortando caminho.
Pensa quanto problema seus amigos já te trouxeram. Pensa em quanto problema você já deu aos seus amigos. Eu sei bem o quanto já dei trabalho ou mesmo decepcionei os meus. E vice-versa. Pensa nos amigos invejosos, nas amigas competitivas. Não menos amigas, não menos amigos por isso, e você pode muito bem ser essa pessoa.
Aí você vê na tela, lê num roteiro, aqueles amigos e aquelas amigas que são um doce só, que existem para ouvir com paciência e ajudar com desprendimento.
No fundo, ninguém acredita.
A próxima frase vai como título, porque não tem negrito forte o suficiente pra isso (alto-relevo seria o mínimo)...
Protagonista não tem amigo
Amiga e amigo de protagonista, pelo menos desse jeito que tanta gente escreve, é um tiro no pé da dramaturgia. Quase sempre, essas personagens surgem porque o autor precisa de uma orelha para quem a protagonista possa dizer o que sente.
Bom, dando um passo atrás, por que a protagonista precisa dizer o que sente? Se quem lê ou assiste o que a gente escreveu não percebe, não intui o que o personagem sente, a gentenão precisa de um personagem-amigo-orelha, a gente precisa é escrever melhor.
Bons amigos
Amiga ou amigo bom na tela são os que criam problema. A que tenta ajudar, quando ninguém pediu, e atrapalha. O que se mete onde não é chamado. Combina de fazer coisas e não faz. Demanda ações, pede dinheiro emprestado, transa com seu namorado, nunca devolve um livro, se encosta na sua casa e não vai embora, bate com seu carro. Age de maneiras que forçam reações, e as reações revelam (sem explicitar) as neuras do protagonista.
Exceção
Uma exceção pra tudo que eu acabei de dizer: cinema e literatura infantil. Lá, a amizade pode ser isso mesmo, pura lealdade. E é muito graças à dramaturgia infanto-juvenil que a noção de amizade se constrói. É uma noção bonita, que vale a pena construir. Mas não somos crianças pra sempre.
Dureza
Morando aqui, na Alemanha, sinto uma falta danada dos meus amigos e das minhas amigas. De estar entre vocês. Com todos os nossos defeitos.
Dramaturgo
Dentre tudo que admiro nas letras do Chico, inventividade, lirismo, humor, o que mais gosto é a dramaturgia. Nessa “Injuriado” há dois personagens (o que canta e o destinatário da canção), há conflito, há uma sugestão de backstory. Imagino, por detrás, talvez, uma amizade tóxica que ia funcionar bem num filme.
"Se quem lê ou assiste o que a gente escreveu não percebe, não intui o que o personagem sente, a gente não precisa de um personagem-amigo-orelha, a gente precisa é escrever melhor".
Gostei disso aqui.
incrivel como a distancia engrandece umas amizade e minimiza outras. gostei das reflexoes sobre as amizades nas telas, suas funcoes e como é chato quando um roteirista usa um amigo como um artificio pra contar coisas literais. a amizade entrega muito mais que isso. Um comentario a parte, Num mundo que vivo hoje, com preguiça pra acentos, nao vejo David como um dos meu ex chefes :) mas um amigo que mora na Alemanha. Acho mais legal. Um abraço