Baseado em fatos e pessoas reais
Os malabarismos de escrever a partir de pessoas que existem (ou existiram). Como criar personagens de ficção a partir da realidade?
Já estão abertas as inscrições pro meu curso “A Criação de uma Personagem”. Mais detalhes mais adiante, nesta edição
Como Pilatos no credo
O primeiro capítulo de “O mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgákov, mostra o encontro entre Pôncio Pilatos e Jesus, que é trazido à presença do governador romano para que se decida seu destino, com o resultado que todos sabemos qual foi.
O que não sabíamos era que Pilatos, naquela tarde quente, sofria de medonha enxaqueca. Não sabíamos disso até Bulgákov, com toda certeza sem qualquer base histórica, nos contar em seu romance. Ele narra aquele momento do ponto-de-vista de Pilatos, e o diálogo deste com Jesus é atravessado pela pressão dessa enxaqueca, que tem algo de alucinatório.
A narrativa que Bulgákov faz dos pensamentos tortuosos do personagem, atravessados pela enxaqueca, e a presença de Jesus ali ganhando uma textura sobrenatural que pode ou não ser atribuída ao sofrimento neurológico do governador, é tão viva que até neurocientistas a estudam.
Das nuvens
Pilatos e Jesus são figuras históricas. É complicado lidar com personagens assim porque… bom, porque são figuras históricas e, no caso de uma delas, um pouco mais do que isso. Não era o caso de Cícero e sua família, que foi de bicicleta da Paraíba ao Rio de Janeiro. As dificuldades, aí, foram outras.
“O caminho das nuvens” (dirigido pelo Vicente Amorim e escrito por mim, primeiro longa dos dois e também primeiro protagonista do Wagner Moura) se baseou na história dessa família, que Vicente encontrou numa notícia e levou aos produtores, Lucy e Luiz Carlos Barreto, que na hora reconheceram: “tem um filme aí!”.
Sim, mas qual filme? As pessoas veem um caso desses e dizem, “nossa, que história!”. Só que a viagem da família de verdade, com todas as suas atribulações e peripécias, não era de fato uma história.
Em “O estado das coisas”, de Wim Wenders, o diretor do filme-dentro-do-filme diz uma vez “stories only exist in stories”. Sim, porque uma história é uma construção. Nada do que acontece na vida real é uma história, no sentido ficcional do termo, porque aos acontecimentos da vida falta foco, propósito, estrutura.
A primeira coisa a entender então é…
… que se você vai trabalhar com pessoas ou acontecimentos da vida, você precisa descobrir (inventar) um foco, um propósito, uma estrutura. Isto é, você precisa ficcionalizar. Moldar o material da realidade segundo as demandas da ficção.
Da sua ficção.
E aí uma armadilha terrível é achar que tudo é interessante, ou que tal ou tal coisa, pessoa ou acontecimento não pode ficar de fora. Pode. Talvez deva. Mas como saber?
A prática me ensinou um caminho. Primeiro, saber tudo que for possível saber. No caso do “Caminho das nuvens”, entrevistando Cícero, o pai, sua esposa e seus filhos. Depois, encontrar uma ou duas contradições, um ou dois conflitos, um ou dois temas. Nessa caso, dois elementos foram cruciais. A obstinação do pai e os conflitos do filho adolescente. Um era “larger than life”, o outro era universal.
A partir daí, depois que você encontra suas “chaves”, não é o caso mais de pesquisar. A partir daí, a realidade existe para te servir, autor ou autora.
Depois dessas definições, e tendo essas definições como seus mandamentos sagrados, você passa a pegar dos acontecimentos reais só que interessa a esse recorte. E a inventar, com toda a liberdade, o que precisar inventar para que a ficção funcione.
É só à ficção que você deve satisfações, a partir daí, e se a realidade se incomodar, bom, azar da realidade.
Machado e Alencar distópicos
Um escritor que andou tomando consideráveis liberdades (e com bons resultados) na complicada seara dos personagens baseados em pessoas reais é o Sérgio Rodrigues. Seu romance mais recente, “A vida futura”, narra as desventuras de Machado de Assis e José de Alencar nesse Rio de Janeiro com cara de distopia que é o Rio de verdade.
O desafio ao qual o Sérgio se propôs é múltiplo. Não se trata só de ficcionalizar figuras históricas, e ainda por cima ficcionalizá-las num contexto que elas não conheceram, mas também de, na própria escrita, “conversar” com a escrita deles (ou, mais precisamente, com a do Machado, que é o narrador do romance).
E estão lá, os capítulos breves, os caminhos sinuosos no narrar, o tom distanciado mas só um pouco, o comentar das coisas sem uma preocupação de correr com o relato, o relacionar-se diretamente com o leitor. Não é paródia de Machado o que o Sérgio faz. O que ele faz é uma espécie de psicografia.
Uma coisa seria fazer um romance histórico, passado no Rio do século 19, com os dois escritores como protagonistas. Outra bem diferente é fazê-los descer de um céu (ou seria um inferno?) dos escritores para o Hell de Janeiro do século 21. Como ver com os olhos deles?
Um risco seria fazê-los ingênuos demais, ou escandalizados demais diante de tantas diferenças culturais e tecnológicas. Sérgio não cai nessa armadilha. Machado e Alencar se espantam aqui ou ali, mas também se adaptam, se envolvem, se jogam nessa realidade.
Liberdade não é bagunça
Seja Bulgákov, seja eu, seja o Sérgio ou qualquer um dos tantos escritores e cineastas que arriscam se apropriar de pessoas reais para os seus relatos (e são inúmeros), a coisa só dá certo quando se toma a devida dose de liberdade em relação às fontes. Você não está fazendo jornalismo, você não está fazendo história, você não está fazendo pesquisa acadêmica quando escreve o roteiro de um filme, um conto ou um romance.
A devida dose de liberdade, presta atenção, lembra do que eu falei lá no início: você vai definir uns parâmetros. Não é bagunça! Tema, conflito, essas coisas você vai definir. A essas definições, que são descobertas e invenções suas a partir das fontes, a elas você vai ser fiel.
O curso
Criar personagens a partir de pessoas reais, vivas ou mortas, históricas ou desconhecidas, vai ser uma parte importante do meu curso “A Criação de uma Personagem”.
A ideia do curso é mostrar diferentes estratégias de criação e desenvolvimento de personagens para cinema ou literatura. Ao contrário do que muita gente pensa (e ensina), não há um só caminho para construir uma personagem. A ideia é experimentarmos uma variedade dessas estratégias, numa combinação de prática e teoria.
Interessa? então olha lá.
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
Contra-argumento
Mas será que existe alguma personagem que não seja baseada em alguém real? De onde as personagens vêm?
Quando a gente fala de personagens baseadas em pessoas reais, a gente fala de uma relação um-pra-um: existiu tal pessoa, tal personagem “é” (com mil aspas) a tal pessoa. Personagens que não se baseiam assim diretamente em alguém seriam ficcionais cem por cento.
Só que não. Mesmo que a gente pense que imaginou tudo. As personagens que a gente cria são mosaicos de gente que conhecemos, vimos, no mínimo ouvimos falar.
E são também, acima de tudo, nós mesmos (falei disso antes).
Bulgákov, veja você, sofria de enxaquecas atrozes. Pilatos é, em alguma medida, Bulgákov. Ou melhor, o elemento no capítulo que dá mais realidade à personagem Pilatos é algo que vem da experiência (intensa, sensorial) do autor.
Salve simpatia
O diabo é outro personagem de “O mestre e Margarida”. Não vou ousar discutir se é o caso de personagem baseado em pessoa real. Deixo o assunto por conta de Mick Jagger, que, consta, se inspirou no livro de Bulgákov quando fez ¨Sympathy for the devil”.
numa crise de enxaqueca eu provavelmente mandaria jesus pra cruz também
Adorei David! No dia que eu sentar a bunda para escrever uma história (que só existe expectativas), vou querer fazer seu curso! 😁