O beijo indestrutível
Conflito não precisa ser oposição, rivalidade, inimizade. Conflito pode ser uma coisa tão simples quanto servir um café a alguém que tem pressa
Um
Todo canalha chora.
Diálogo
A segunda cena de “O Beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, se passa na casa de Selminha. O pai dela, Aprígio, apareceu de surpresa, apressado, um táxi na porta esperando. Ele quer contar alguma coisa à filha.
Mas Selminha não está preocupada com o que Aprígio quer lhe contar. Ela está preocupada, num afã de dona de casa, em servir algo ao pai. “Mas o senhor janta com a gente.” Não, ele tem pressa.
Aprígio introduz, em parte, o assunto que é o conflito central da peça, mas não impressiona a filha, que, depois de ver recusado o seu ensopadinho de abóbora consegue enfim que o pai aceite um café. “Um cafezinho eu aceito. Café, topo”.
A cena se estrutura em dois eixos. Aprígio tenta contar que o marido de Selminha ficou na delegacia prestando depoimento depois de ter beijado um atropelado na rua, e a filha tenta servir um café ao pai e lida com obstáculos como a pressa dele e a falta de pó.
São duas “tramas” dentro da cena. A trama “contar sobre o beijo” e a trama “servir um café”. Uma não é menos importante que a outra, e aí já vai uma lição importante.
O que Aprígio tem a dizer é difícil de dizer. Ele mesmo não entende bem o que sente a respeito. A maioria dos roteiristas, quando o personagem está numa situação assim, faz duas coisas: o personagem verbaliza a sua confusão (“não sei o que pensar…”, “estou confuso”) e os outros personagens na cena de cara dão importância à situação.
O que acontece quando a gente não sabe o que dizer? A gente fala coisas pela metade, a gente contorna o assunto, a gente faz uns silêncios fora de lugar. Ao incluir a “trama” de Selminha tentando servir o café, Nelson Rodrigues dá oportunidade a que as vacilações naturais de Aprígio aconteçam sem derrubar o ritmo da peça. O nome disso é desenho de cena.
Ao mesmo tempo, essa dinâmica “o que Aprígio tenta contar” versus “Selminha e o café” torna a cena muito mais real. Porque soa cotidiano. Porque soa íntimo. Porque Selminha (e Dália, a outra filha que também está na cena) não sabe que o que o pai quer dizer é tão importante. Ela não sabe que está numa peça chamada O Beijo no Asfalto! Parece óbvio, mas, na prática, os roteiristas muitas vezes fazem os personagens pensarem, agirem e falarem como se soubessem em que filme estão.
Há ainda uma terceira “trama” na cena, tornando o seu desenho ainda mais rico, a que diz respeito a Dália, a irmã, e seus sentimentos por Arandir, o cunhado. Com essa dança entre três eixos, a cena jamais deixa de ser viva, dinâmica.
O diálogo é todo conflito, é uma dança e ao mesmo tempo é uma luta, sem que haja, na maior parte do tempo, grandes desacordos entre os personagens. Esta é outra, mais uma, grande lição da cena: conflito não precisa ser oposição, rivalidade ou inimizade, conflito pode ser algo tão simples quanto servir um café a alguém que tem pressa.
Aprendizado
Quer aprender a escrever diálogo, a construir uma cena? Faz um favor, lê “O beijo no asfalto”, lê qualquer uma das chamadas “tragédias cariocas” do Nelson. Estuda esse negócio. Imita. No duro, faz uns exercícios de imitar o cara. Você vai ver, é batata. Falo por experiência própria.
Dois
Tá, lógico, não é só canalha que chora, todo mundo chora. Já já me explico.
Palco e tela
Terminou semana passada o semestre de inverno aqui na Universidade de Colônia, e com ele encerrou-se o curso que dei, chamado “Entre o palco e a tela: diálogos com o teatral no cinema brasileiro”. O curso era uma tentativa de investigar um tema que há muito me interessa, inclusive na prática: como a dramaturgia cinematográfica pode funcionar sem o apoio da ilusão de realidade.
Exibi, na íntegra ou em trechos, “A falta que nos move", da Christiane Jatahy, “Jogo de Cena” e “Moscou”, do Eduardo Coutinho, o meu “Um romance de geração”, e a adaptação do “Beijo no asfalto” dirigida pelo Murilo Benício, entre outros.
Foi discutindo a versão do Benício para o “Beijo” que disse aos alunos: “pode ser a pior companhia teatral do mundo, se montarem o Beijo com um mínimo de respeito pelo texto, vai funcionar. O Beijo no Asfalto é indestrutível”.
Atenção, eu não estava falando mal do filme. Tenho lá minhas questões, acho, por exemplo, o Amir Haddad equivocado, a falar platitudes, muito pouco rodrigueano para ocupar o lugar que ocupa. Mas isso não é nada comparado com o que há de bacana na proposta de contar a peça, na tela, como Benício fez. Gosto do filme. É um filme corajoso.
Mas o que disse aos alunos, eu sustento. O texto do Nelson sobrevive a qualquer montagem, mesmo às mais indigentes.
Três
O canalha (ou a canalha) alardea o choro. Gosta de mostrar que chorou como se um episódio lacrimogênio atestasse sua humanidade. Políticos (entre outros canalhas) fazem muito isso.
Selvagem
Acho que não sou canalha (não cabe a mim julgar), mas vou contar de um choro. Porque me espantou. Estava revendo “Opening night”, escrito e dirigido por John Cassavetes, com Gena Rowlands no papel de Myrtle, a atriz principal de uma peça cuja estreia em Nova York se aproxima. Cassavetes também atua no filme, no papel de Maurice, um ator secundário na peça.
Quando o filme acabou, no instante em que acabou com a cena linda, selvagem, desajeitada, imperfeita, corajosa em que Maurice e Myrtle, ela bêbada, incapaz de seguir o texto da peça, improvisam diante do teatro lotado, naquele momento me veio um nó garganta e um choro tão súbito e violento quanto breve. Uns segundos só, dois ou três, mas parecia que minha garganta ia se rasgar.
De onde veio o nó na garganta? Da beleza. Veio de lembrar que o cinema podia ser isso, corajoso e imperfeito. Uma aventura selvagem do corpo.
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
E o sebo sobrevive
Na edição passada, contei do meu reencontro com Paul Auster num sebo em São Paulo e me perguntei se ele ainda existiria. O Alexandre, leitor aqui da Ein Filterkaffee, foi lá e fotografou. Tá lá, a simpática livraria Acervo da rua Artur Azevedo. Bateu uma puta saudade. Recomendo o sebinho, dos melhores que conheço.
Puro teatro
Escutei essa música pela primeira vez no final de “Mulheres à beira de um ataque de nervos”. Almodóvar que também sempre foi capaz de filmar a beleza na imperfeição.
que lindo tá esse
Você me fez gostar de Nelson Rodrigues, e isso diz muita coisa.