O stalker carinhoso
Não consigo escrever um subtítulo para esse post que se tornou meio pessoal demais, mas adianto que se fala de música, leveza e da necessidade de ver as coisas com coragem para poder escrever
Daqui a duas semanas, vou estar no Rio. Desde 2020, quatro anos de Alemanha, cada volta é uma história. Nunca é igual, e dessa vez não vai ser diferente.
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
Aproveito pra avisar que este post aqui vai ser atípico. Menos dicas de escrita, menos cinema e literatura que o usual. Semana que vem voltamos à programação de sempre
Música no carro
Era início de 2019, começo de um pesadelo que em muitos sentidos não acabou até hoje. Estou no carro,num engarrafamento em São Paulo. Penso nas notícias todas, todas terríveis, daquele momento. Tem música tocando, a melhor coisa de carro é ouvir música no carro.
Com as notícias ruins na cabeça e a música no ouvido, penso no que, do Brasil, eu salvaria para mostrar à minha filha menor, que vai crescer em outro país, que é em muitos sentidos uma estrangeira.
Uma playlist. Uma playlist de música brasileira. É isso que eu vou ter pra dar a ela.
A única coisa do Brasil sem a qual eu não saberia viver é a música.
Mischmasch
Aqui perto de casa tem um bar português chamado Mischmasch, onde quase toda terça-feira alguns brasileiros juntam-se a alemães que falam português (ou que estão aprendendo) para tocar, cantar e ouvir música do Brasil.
Das últimas vezes, levei comigo uma amiga que morou na Bahia, há muitos anos. O português dela é bom o bastante pra cantar junto, acompanhando num papel, e para entender em linhas gerais o que está cantando, mas um ou outro detalhe na letra das canções lhe escapa e eu explico.
Letra de música é uma das minhas obsessões. Tem muita dramaturgia em letra de música e eu até uso algumas em exercícios de escrita, nas oficinas de roteiro, como eu contei num post anterior. Mas há algo diferente nisso de mostrar as músicas, falar delas, para uma estrangeira. Como se eu olhasse para a música em paralaxe.
É uma noite de sambas e choros clássicos mas também de coisas mas recentes, e o que costura o repertório é gente sofrendo por amor. É lindo, é claro. Música após música, o “eu lírico” se rasgando em dores.
Comento com a amiga, “it’s pain and misery and then pain and misery again”. Ela ri, porque é mesmo isso. É engraçado se dar conta de que “Carinhoso” é música de stalker (“mas mesmo assim, foges de mim”).
A cada samba, o “eu lírico” se rasga em dores mas o que ele quer mesmo é um xodó, um chamego, um cafuné, um amorzinho gostoso. Sim, porque, como comento com a amiga, “all they want is to get laid”.
Todo aquele rasgar-se é ritual de acasalamento. Olha como eu sofro. Viu? Então vem cá.
Rapte-me, camaleoa
A overdose de “vem-aplacar-a-minha-dor" me fez pensar em como essa cultura legitima, com toda a sua inegável beleza, coisas medonhas como chantagem emocional, ciúmes desmedidos, amor como posse.
Então inventei de compilar uma playlist em que o “eu lírico” tem o mesmo objetivo de conquistar alguém, mas faz isso com leveza. Sem tanta agonia no peito, sem maldizer ninguém, sem chantagem. Uma playlist em que amor não rima com dor. Pode até ser que a pessoa desejada continue inacessível. Tudo bem, ninguém vai morrer (nem muito menos matar) por isso.
Rapte-me
Adapte-me
Capte-me
It's up to me
Coração
Ser querer ser
Merecer ser
Um camaleão...
(Caetano Veloso, “Rapte-me, camaleoa”)
Eu não vou nem perder meu tempo e o seu tentando escrever um comentário que com certeza ficaria aquém da perfeição formal, rítmica e temática disso. Só quero dizer que acho foda o cara se colocar nessa posição de que cabe a ele merecer ser um camaleão. A música é toda felicidade erótica, leveza.
Leveza era uma das seis propostas de Italo Calvino para o milênio.
O deserto e seus temores
Tem versos de letra de música que são uns petardos. Tanta inventividade, tanta precisão e tanta percepção do mundo em tão poucas palavras.
Demente, inventa cada carícia
Egípcia, me encontra e me vira a cara
(Chico Buarque, A Rosa)
Tanta coisa em duas linhas. Se puxar o resto da letra, tem dois personagens (o “eu” que canta e a Rosa, de quem ele canta) complexos, contraditórios, vivos. Mesmo só com esse trecho, há toda uma dinâmica de relacionamento (ou falta de?) que muita gente escreve um romance inteiro e não chega lá.
A Rosa faz gato e sapato do cara. Mas não rola um pingo de rancor.
Sofrência
Dá para contar uma história do desejo nos últimos cem anos através das letras de música brasileira. Em algum momento, acontece uma libertação. Pensa na diferença entre dizer “eu sei que vou te amar por toda a minha vida", que, com todo o devido respeito, é mentira, e dizer que “o nosso amor a gente inventa pra se distrair”.
Em algum momento, entre os anos 70 e os 80, a música brasileira, ou pelo menos boa parte dela, afinal se livrou da dor de corno. Ou, se nào se livrou de todo, revelou maneiras mais leves de querer. E isso é lindo.
Não quer dizer que dor de corno não exista. Existe, quem nunca? mas o fato dela ser naturalizada, aceita e até glamurizada leva a tragédias como o feminicídio e a música sertaneja. Com o perdão de quem gosta, e pedindo licença pra uma grosseria sem precedentes nessas páginas, sofrência é o caralho. Sou mais Marina e Caetano em clipe brega do Fantástico.
Clichês da cabeça
Falei que muito romance não chega lá onde o Chico chega em duas linhas de “A Rosa”. Sabe por que? Não é só por falta da técnica exuberante que o Chico tem. Não chega lá porque a pessoa que escreve não enxerga a complexidade das coisas, acima de tudo a complexidade das coisas do desejo. Gente que acha que tudo é assim ou assado. Pra escrever, é preciso ter coragem de olhar e ver.
Ver de uma forma surpreendente. Desculpa, mas isso nào é só forma. Quando Joyce encerra Ulisses com o monólogo de Molly Bloom ele não está apenas dilacerando umas tantas ideias sobre como devia ser um romance. Ele está também falando de algo de que não se falava, desejo e intimidade, com as palavras “sujas” que tantas vezes são as únicas mesmo capazes de falar de desejo e intimidade.
O diálogo que eu escrevi e do qual mais me orgulho até hoje está, quase com certeza, perdido pra sempre. Era o final do meu curta chamado “O coringa”. Zezé Polessa e Roberto Bomtempo, na cama relaxados num momento pós sexo, se distraem falando sinônimos para os órgão sexuais um do outro. Pau, boceta, e por aí vai. Eles riem e falam as obscenidades com aquela certeza de não estar sendo julgados que só quem acabou de trepar bem pode ter. É a cena mais verdadeira que eu já escrevi.
E que tudo mais vá pro inferno
É impossível desver tudo que eu vi e vejo de horror no Brasil, não só mas principalmente nos últimos anos.
Mostrar nossa música a alguém que tem a sensibilidade para apreciá-las, a amiga que levei ao Mischmasch, me faz bem porque me permite abraçar o que é bom. E que tudo mais vá pro inferno.
O retorno
Não é só a música. No Brasil vivem tantas pessoas que eu amo. Tantos amigos. Tô quase cantando o samba do avião. Até já.
falando em músicas de caetano, lembrei da ótima "mora na filosofia" : pra que rimar amor e dor....
Tudo a ver. É que pra alma cantar, é preciso repertório. Temos. Daria para escrever uma... ópera? musical? Daria para fazer um retrato sonoro da minha – e de todos nós, m(pb)elômanos –, fácil, fácil com ele. Obrigado por seus textos.
abração