Tijolo
O que me faz reler um romance de quinhentas e vinte e duas páginas menos de um ano depois de lê-lo pela primeira vez? Com tanto livro na estante, por que retorno a esse tijolão?
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
O solidário
O cara, um pouco mais novo que eu, vem vindo do fundo do café. Do meu lado esquerdo, uma mulher lê um caderno de capa dura em que alguém, talvez ela mesma, escreveu páginas e páginas a lápis numa caligrafia espantosa. Eu estava para comentar da caligrafia quando o cara que vem do fundo para, reconhece a mulher, eles se falam.
Já contei sobre os lugares nobres nesse meu café. Pois nesse momento os lugares vagam. O homem e a mulher do caderno se mudam para aquelas duas poltronas junto à porta de vidro que dá pra rua. Ficam por lá conversando, eu volto ao meu livro, me distraio deles.
Quando olho de novo, estão se despedindo. Ela vai embora, com seu caderno e sua caligrafia, ele fica sozinho naquele espaço para dois. Olha em volta, vê um casal com um menino de dois anos no máximo. Oferece ao casal os lugares nobres. Eles agradecem mas ficam onde estão. Claro, já tinham se ajeitado com criança, carrinho, paradas pra criança comer, paradas pra criança brincar, seus cafés, um naco de bolo que nem conseguiram provar ainda. Não valia a pena a mudança. Fica o cara sozinho numa das poltronas perto da rua.
Mas ele fica inquieto.
O canto do meu lado direito vaga. O homem abandona os melhores lugares do café e se estabelece ali naquele cantinho (dá pra ver na foto abaixo) meio desconfortável. Aliviado ele, imagino, por não ocupar mais espaço do que precisa. Quem disse que o socialismo morreu?
A história de dentro
O tijolão é um romance, ou pelo menos se apresenta como tal e, sabe-se hoje em dia, sabe-se desde Duchamp, que uma obra de arte é (ou não é) o que ela diz ser. É também autobiografia, e se declara fiel aos fatos. É também autoficção, e como é possível ser ao mesmo tempo fiel aos fatos e autoficção? É também reflexão sobre a escrita e sobre o lugar do leitor. É também engraçado. É também às vezes cretino. E em muitos momentos é comovente, mas tão comovente que me dá ganas de usar um advérbio de modo para tentar fazer que você entenda quão comovente. Mas me contenho.
Eu sabia quem ele era, é claro, mas nunca tinha lido Martin Amis até encontrar esse seu livro, “Inside story”. Alguns livros são destino. Entrei naquela livraria pequena certo que eles só teriam livros em alemão. O livreiro me mostrou uma prateleira mínima com títulos em inglês.
O único que tinha uma chance de me interessar era esse. Li a primeira página ali mesmo. Gostei. Quanto custa? 9,99 Euros. Deal. Peguei, levei direto pro café, comecei e não queria largar.
Isso foi pouco menos de um ano atrás. Pouco depois que eu terminei o livro, Amis morreu, o que me deixou bem triste, confesso.
O tal rolé
É a morte, o rolé solitário do título deste post.
Eu era jovem quando li um romance do Ray Bradbury traduzido em português na época como “A morte é uma transação solitária”. A edição atual se intitula “A morte é um negócio solitário”. Lembro de ter gostado do livro (mas não boto a mão no fogo pelas minhas opiniões aos vinte anos) e odiado o título. Tinha de haver um jeito melhor de traduzir “Death is a lonely business”.
É doido, mas de tempos em tempos, nesses anos todos, esse título me vem à cabeça. Só agora encontrei uma tradução que eu gosto, e que não poderia ter encontrado anos atrás porque não existia “rolé” nesse sentido meio sinônimo de tudo que a palavra tem hoje. A morte é um rolé solitário.
Porque é mesmo, não é?
O livro do Amis, que logo logo iria ele mesmo experimentar “a passagem", como diz quem acha que existe o além, é tudo aquilo que eu disse acima, em termos gerais, mas em termos mais específicos é sobre três pessoas da vida do autor. Os amigos Christopher Hitchens e Saul Bellow, e uma paixão de juventude, Phoebe Phelps.
Amis acompanha a decadência física e morte dos amigos Hitchens e Bellow, mas por um bom tempo você não sabe que o livro vai ser isso. Você vê muita coisa antes disso. Vê Amis e Hitchens como jovens intelectuais, vê a amizade com Bellow (bem mais velho que Amis) se estabelecer. Passa por episódios cômicos, lê comentários sobre os trabalhos dos dois.
Mas em algum momento o caminho da morte se abre para cada um dos dois. E Amis os segue. Até onde dá. Até onde uma amizade permite. Até onde a literatura é capaz.
Phoebe Phelps não está morta. Amis não a vê há muitos anos e, através de uma sobrinha dela que o procura, ela irá encontrá-la de novo. Os dois que tinham um do outro a lembrança dos corpos jovens, uma outra vida. E esse encontro é um tipo de morte também..
Afogando em números
Por que eu escrevi, lá em cima, o número de páginas do livro, 522, por extenso? Por que “quinhentos e vinte e dois”? Por que isso aqui é um texto, não é uma planilha de excel.
Olha só, é feio pra burro usar numeral em texto que não seja técnico ou jornalístico. Sendo o ápice do horror se você pra piorar meter um zero antes do um. “Paulinha tinha 3 filhos e 01 marido”. Se eu leio isso eu penso, aposto que com razão: essa pessoa nunca leu um livro.
É pra ir ou pra chorar?
Uma brincadeira que minhas duas filhas amam. Enfileirar sinônimos para “morreu". Bateu as botas, abotoou o paletó, tá comendo capim pela raiz, esticou as canelas.
Então, por que?
Voltei ao “Inside story” porque o prazer de lê-lo foi imenso e eu queria viver esse prazer de novo.
Simples assim.
Mas há muito mais que falar sobre esse livro, espero conseguir escrever sobre ele de novo em breve. Ah, e talvez te interesse saber, se por acaso você não ligou o nome à pessoa, que Martin Amis é o mesmo que escreveu o romance “A zona de interesse” que deu origem ao filme de mesmo nome.
Ave Mautner
Para o que você estiver fazendo e vê isso. Até o fim. Vai valer a pena.
E agora canta comigo…
Morre-se assim
Como se faz um atchim
E de supetão
Lá vem o rabecão
Assino a newsletter há um tempo, mas ainda não tinha lido – todo dia chegam várias newsletters que eu assinei num ímpeto e que agora não consigo ler. Mas hoje li a sua e adorei. Não perco mais! E o vídeo final é demais!! Abraço grande!
Rolé! Rolé!! Enfim alguém que sabe que o é é aberto, como eram os bons antigos rolés!! Merci again, David, pelo oásis geracional. Quem disse que o socialismo acabou?