Caetano no abismo da memória
Detalhes e memória na construção do texto, na literatura e no cinema, a partir de uma entrevista que viajou no tempo.
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
1
Em 1989, eu estava de ressaca dia sim, dia não. Aquele era dia sim. Meio da tarde e eu ainda na cama, o quarto num breu uterino, quando tocou o telefone. Atendi. "Queria falar com o David"; "sou eu"; "oi David, é o Caetano Veloso".
2
A personagem acordar, num filme, é uma coisa chata. Chata de escrever, chata de filmar e chata de assistir. Existe um tempo interno do despertar que é infilmável.
3
A memória é a matéria-prima da escrita. Mesmo que você só escreva ou filme a ficção mais desvairada. John Cassavetes disse que, ao fazer filmes, fabricava memórias futuras para as outras pessoas.
Mas a memória é uma coisa problemática, não é? Ela reedita a si mesma o tempo todo.
1
Antes do atual Festival do Rio, existiu, nos anos 80, um evento chamado FestRio. Por motivos políticos, o FestRio, em 1989, aconteceu em Fortaleza. Caetano estava lá para participar de um debate. Como quase todo debate, aquele teve seu momento demencial. Um cara da plateia, desentendendo a letra da "Estrangeiro", perguntou a Caetano algo sobre "pensar imperialista"
Só que a letra da música diz "pense impressionista". Caetano de início não percebeu que o cara disse "imperialista". O cara não sabia que a música dizia outra coisa. O diálogo, surrealista, não ficou registrado. Se tivesse ficado, talvez integrasse esse livro que acaba de sair, "Cine Subaé", organizado por Cláudio Leal e Rodrigo Sombra, que mapeia o pensamento cinematográfico de Caetano Veloso.
2
Acho que nunca escrevi uma cena de despertar. Se tiver que escrever, resolvo na elipse. Take um, a pessoa dormindo. Take dois, a pessoa fazendo qualquer coisa. Feito.
3
Sabe o Karl Ove? O Knausgaard, que escreveu milhares de páginas de minúcias autobiográficas? Não li tudo, mas li boa parte. Lembro de uma cena, ele adolescente escondendo na neve umas garrafas. Quando li, pensei, ninguém lembra tantos detalhes. A ficção, nessa obra memorialista e portanto, em tese, factual, é a construção dos detalhes. O acontecimento “esconder as garrafas΅ se deu, imagino. Mas as minúcias são pura invenção, e é nelas que reside o ficcional.
Não sou o Karl Ove e sofro de um horror congênito às descrições minuciosas. Por isso, nem tento descrever, por exemplo, o quarto da ressaca. Mas poderia tentar descrever o acordar, porque é análogo ao acordar de hoje, ao que terei amanhã e depois e até que a definitiva noite se instaure e tal.
1
O telefone me despertou no quarto-útero, era o Caetano. Não lembro se a ressaca acentuou ou atenuou a surpresa. Resolvo numa elipse que é também um flashback: Fortaleza, um mês antes do telefonema. Depois do debate, a organização do festival leva umas pessoas para visitar um ponto turístico, um forte, acho. Foi lá que perguntei ao Caetano se ele daria uma entrevista para a Tabu, a revista underground sobre cinema que eu e Ivana Bentes editávamos.
Ele diz que dá a entrevista, sim, e pede meu telefone para combinar quando voltasse ao Rio. Eu não tinha nem papel nem caneta, disse que deixaria o número no escaninho dele no hotel, e foi o que fiz. Achava que aquilo era apenas o jeito gentil dele se livrar de mim, mas, como se viu, era pra valer. A entrevista aconteceu e foi publicada. E ficou sumida trinta e quatro anos, até ser incluída como um dos capítulos de “Cine Subaé”.
Dar o telefone, precisar de papel e caneta, escaninho de hotel para deixar recado, uma pessoa ligar pro telefone fixo e a outra atender sem ter ideia de quem é. Era assim.
2
Em “O poderoso chefão”, um personagem acorda com a cabeça de um cavalo na cama. Aí sim, um despertar de cinema que vale a pena filmar.
3
Descrições demasiado minuciosas à parte, nada dá mais realidade a um texto que o detalhe certo na hora certa.
Uma coisa é escrever: “Chegamos no meio da tarde, eu e o fotógrafo, ao prédio onde Caetano morava, no Leblon”.
Outra coisa é escrever: “Desembarcamos do fusca verde do Cícero Rodrigues, fotógrafo da Tabu, às quinze horas de uma quarta-feira ensolarada. O porteiro do prédio onde Caetano morava, na General Urquiza…”
Nenhuma das duas está muito bem escrita, mas a segunda versão dá muito mais sensação de realidade.
Acontece que não lembro qual era a cor do fusca do Cícero, a que horas chegamos, se fazia sol ou não ou se o prédio era na rua General Urquiza. Se trocar fusca verde por fusca azul, branco ou marrom, quinze horas por dezesseis horas, quarta por terça ou sol por chuva, dá no mesmo. O efeito de realidade é o mesmo. Não é a veracidade dos detalhes que importa, mas a presença de detalhes verossímeis no texto.
1
Não lembro nada da casa do Caetano. Não lembro como ele estava vestido (ou eu). Não vou me basear nas fotos que o Cícero recuperou do seu arquivo. Não vou fabricar detalhes. Você vai ter que acreditar em mim sem eles.
Do que mais me lembro é do entusiasmo, a vivacidade. O entusiasmo pelo “Superoutro”, um média-metragem de Edgar Navarro, filme radical e único. Pelo “Histoire(s) du Cinèma”, de Godard, que havia sido mostrado em Fortaleza. Tudo isso e mais está lá, na entrevista, no livro “Cine Subaé”. Mas eu, quando releio, não leio só a página. Algumas daquelas palavras, eu escuto. Vêm de lá, do finalzinho de 1989.
Escuto a hora em que Caetano fala de como Pedro Almodóvar filma o sexo, os corpos, aquilo que ele descreve como “o ataque sexual”. O que ele diz é de uma precisão assombrosa e talvez o ponto alto da entrevista. Escuto sua crítica à caretice de “Paris, Texas”, de Wim Wenders, e isso me lembra Almodóvar, à beira da piscina do Hotel Nacional, dizendo a mim e a Ivana, uns dois anos antes, sobre Wenders: “este homem é um falso”.
Olhar para o passado é como se debruçar num abismo no qual não se pode cair.
2
Um limite do cinema é a imprecisão da memória. Não dá para imprimir na tela essa imprecisão. Não de verdade. Quando uma personagem se lembra de algo e isso entra em flashback, o que vemos imprime como se de fato houvesse acontecido. O flashback pode ser confuso, de propósito, mas, ainda assim, a cada imagem da confusão o espectador vai conferir um valor de verdade, nunca de indefinição: “isso que a personagem está recordando, ou foi assim que aconteceu ou ela está mentindo que se deu assim”.
1
Lembro de um cuidado meticuloso na escolha das palavras quando Caetano falou das limitações da encenação nos filmes brasileiros. Um dos pontos mais complexos da entrevista, e no qual me pego pensando de tempos em tempos.
Mais do que talento ou conhecimento técnico, qualidade de encenação demanda dinheiro. Quem não conhece por dentro o processo de fazer filmes não se dá conta de como a disponibilidade de tempo para filmar define o que um filme há de vir a ser. E a coisa cara num filme é tempo.
Você pode ter o talento, você pode ter o conhecimento da técnica, e assim saber que para tal cena você precisa de tais planos. Digamos, uns dez planos, sendo um deles um travelling suspenso sobre o cenário. Beleza, mas você só tem a metade de uma diária para filmar aquela cena. Não rola.
São inúmeras as cenas que escrevi e que ficaram aquém do escrito, não por falta de talento de quem filmou, mas porque não havia tempo.
Quando fala de “O cinema falado”, único filme que dirigiu, Caetano diz que não tinha dinheiro para fazer um filme simples. É perfeito isso. Quando se tem muito pouco recurso para filmar, o “experimental” (não gosto do termo, mas vá lá) é um caminho interessante possível. É isso ou folclorizar-se na precariedade.
2
Há filmes que se constroem no conflito entre versões. “Rashomon”, por exemplo. Mas, ainda assim, cada relato imprime como verdade, quadro a quadro. Ou como mentira. Mas nunca imprime imprecisão. Porque, como disse Godard, “o cinema é a verdade a vinte e quatro quadros por segundo”.
1
Vejo, numa das fotos do Cícero, que há um gravador entre Caetano e eu, no sofá. Talvez aquela fita ainda exista. Talvez aquele David ali, para quem o cinema era o centro do universo, ainda exista. Só que sem cabelo.
∞
Li ontem que Godard tinha que terminar o seu último filme até uma segunda-feira, porque na terça iria morrer. E terminou. Não é lindo isso? lindo de chorar?
Cabíria e o mágico
Caetano ama Fellini. Acho que ele prefere “La Strada”, mas esta cena de “Noites de Cabíria”, em que Cabíria se deixa levar por um mágico charlatão que faz acontecer um momento mágico de fato (ele, um charlatão), para logo depois desfazê-lo… Mágico e charlatão ao mesmo tempo. Esta cena é parte da minha vida tanto quanto qualquer coisa que tenha me acontecido de verdade.
PS:
Há uma outra entrevista minha com Caetano, em “Cine Subaé”, feita em 94, para um programa de TV. Caetano é especialmente combativo nela, pois vivíamos um momento de bombardeio atroz ao cinema brasileiro (e ao cinema autoral). Não lembro nada das circunstâncias da entrevista. Na minha memória, os assuntos ali se mesclam com os da primeira, como se editados numa só.
PS 2:
“Amarcord” quer dizer “eu me recordo”.
Quando jovem, eu desprezava a literatura memorialista. Achava uma coisa autocomplacente, fácil. Eu era um quadrúpede de oitocentas patas.
E cada pedrada com luva de pelica que nem sei... Siga baixando a mao nesse teclado, David.
Detesto descrições precisas e reencenações espertinhas de diálogos com travessão. Prefiro uma boa paráfrase. Tenho lido sobre experiencias de imigrantes na Dinamarca e sempre me perdem aí. Embarquei no texto e segui o barco com Godard, achei lindo ele querendo marcar-se como corpo nos últimos dias. Atiçou os dedinhos aqui também.