Canguru, cegonha, parágrafos, post-its, diários
Como parágrafos transmitem energia, uma cegonha distrai o escritor, post-its lhe dão liberdade, e um canguru combate a extrema-direita. Ah, e afinal quem é o leitor de um diário?
Segunda edição
Essa newsletter começou semana passada, com o post “O personagem é o que o que o personagem faz”. Neste segundo número, continuo alguns temas do primeiro e inicio uns novos. Se não tiver lido o outro post e a curiosidade bater, vai lá.
Querido diário
Hoje perdemos os melhores lugares, aquelas duas poltroninhas quase na rua. Quando cheguei, estavam ocupadas, peguei esse canto mais aqui pro fundo. Há pouco, a poltrona da direita vagou, mas trocar de lugar sem comprar outro café me parece errado. Não que alguém fosse prestar atenção ou cobrar. Então, senta aí. Não gosta de café preto? Pede um Milchkaffee, mas, atenção, mesmo o pequeno é do tamanho de um balde.
Eu anoto muita coisa, o tempo todo, e quase tudo vai pro meu diário. Esta newsletter nasceu quando me dei conta de que parte do que escrevo no diário podia interessar outras pessoas. Fazer a newsletter seria um prolongamento público de algo que já faço, nem daria trabalho a mais. Então eu fiz, nasceu isso aqui.
Agora, um problema. Desde que comecei a newsletter, não escrevi mais no diário. Tenho que achar um jeito de manter uma sem matar o outro.
Outros diários
Eu tinha preconceito com diários publicados, de escritores, artistas. Imaginava chatíssimo ler as notas íntimas de outra pessoa. Foram os diários do Ricardo Piglia que me fizeram mudar de ideia.
Cheguei no Piglia porque pretendia (ainda pretendo) usar a forma de diário em algo que estou escrevendo. E não estava me entendendo bem com aquilo. Os exemplos de uso da forma “diário” que achei, em ficção, não me convenciam. Eu não acreditava na voz, aquilo não parecia ter sido escrito “de si para si”, como um diário costuma ser.
(paro de escrever quando vejo lá fora, pousada, uma cegonha, olho a cegonha, tão quieto quanto ela, se é que isso é possível, depois fotografo a cegonha; uma guarda do Museu de Arte Asiática, onde escrevo agora, também chega perto, também fotografa… ah e desculpa, mudei de lugar, do café pro museu, e nem avisei)
Aí fui pro Piglia. Cujo diário é e não é um diário, é e não é ficção, a começar pelo título (“Os Diários de Emilio Renzi“). Com Piglia/Renzi achei o cerne da questão. O que define o diário, em tese, é ser um texto escrito para não ter leitor (ao menos nenhum outro além de quem escreveu). Mas existe mesmo escrever sem leitor? quando escrevo no meu diário, é para mim que eu escrevo, ou sempre há por sobre meu ombro a sombra de alguém que imagino que me lê?
Para manter meu diário e a newsletter vivos ao mesmo tempo, vou ter que inventar um outro olhar sobre meu ombro, para o diário. Já que para a newsletter eu agora tenho o olhar de vocês.
Transmissão de energia
Um parágrafo escrito e uma cena filmada/encenada têm algumas coisas em comum. Uma delas é a necessidade de não satisfazer por completo, de funcionar como uma unidade própria, uma atração (num sentido circense mesmo) em si, mas ao mesmo tempo deixar uma certa “carga” para energizar a cena ou o parágrafo seguinte.
Um parágrafo não devia ser mera passagem entre o anterior e o seguinte. Devia ter algo próprio nele. Mas, a menos que seja o último, não pode esgotar um certo ímpeto do texto. Não pode ser satisfatório.
Experimenta reler seus textos, ou rever suas cenas, e cortar sempre a última frase, a última ação.
Analógico e portátil
Desde que me mudei pra cá, tenho trabalhado direto com produtoras portuguesas. Até agora, foram dois longas documentais, uma série e um filme de animação. Com exceção da série, os demais são formatos com os quais pouco trabalhei (ou nada, no caso da animação).
Morar num novo país, trabalhar num outro novo país, novas vozes, paisagens, visões. Tenho escrito muito mais aqui. Não só trabalhos como esses, para os quais fui contratado, como coisas minhas. E tudo isso também me leva a descobrir e inventar processos.
Isso aí na foto é o beat board portátil que usei para poder trabalhar as principais ideias para um dos longas ao mesmo tempo fora de casa e longe de qualquer eletrônico.
Comprei um caderno quadriculado e um monte de post-its. À mão (é claro) copiei beats, ideias e dúvidas para os post-its. Não escrevi nada no caderno, a ideia é que ele seja uma parede mesmo. Passei a andar com ele o tempo todo.
O filme se construiu ali.
Rabicho
Alguma coisa a mais sobre uns assuntos da semana passada…
Meu amigo, inimigo dos advérbios
Quem primeiro me deu a dica de que eliminar os advérbios de modo era essencial para escrever bem foi um amigo que já morreu. Confesso que não lembrava dele há anos. Lembrei depois que escrevi o post da semana passada, e tanta gente comentou sobre os advérbios.
Lembro do momento exato. Era a galeria do cineclube Estação Botafogo (escrevo assim inteiro, cineclube Estação Botafogo, porque naquele tempo não havia ainda nada do que haveria depois, Grupo Estação, Festival do Rio), e aquela galeria era um dos centros da vida carioca.
Cruzo com o amigo, ele me para e me conta que está fazendo uma oficina literária. Foi a primeira vez que ouvi falar de tal coisa. Tinha aprendido que os advérbios de modo sempre podiam ou ser substituídos ou cortados. Ele estava meio bêbado, com um copinho plástico de cerveja talvez já meio quente na mão. Eu por sorte ainda estava sóbrio para registrar a dica.
Tivemos outras conversas sobre escrever. Depois o perdi de vista, até saber que tinha morrido, jovem ainda. Não sei o que escrevia, acho que não chegou a publicar.
Bleeding Edge
Tentei explicar num vídeo um pouco do que foi a minha experiência de ler o romance de Thomas Pynchon, “Bleeding Edge” (publicado no Brasil como “O último grito”, em tradução do Paulo Henriques Britto). A seguir, o vídeo (3 minutos e pouco)
O que eu acho que quis dizer com o vídeo é que o romance consegue me capturar e me manter “dentro” dele apenas com a aparência de uma trama, que na melhor das hipóteses não passa de uns fiapos, e uma densa textura hiperrealista de gestos, coisas, falas, ruídos, deslocamentos, numa sequência de parágrafos que são sempre irresistíveis e ao mesmo tempo nunca me dão descanso.
Lê o primeiro parágrafo e você já vê. Em poucas linhas a gente entende, sem nem parar pra pensar, que Maxine se separou há mais ou menos pouco tempo e que tem filhos adolescentes ou quase lá. Mas não é isso o principal. Olha o ritmo. As frases ficando mais curtas e ao mesmo tempo mais coloquiais até acabar nesse “so?” (“e aí”, na tradução do PHB) que te obriga a ler o próximo parágrafo.
É terceira pessoa, mas… é Maxine, não é? É ela debatendo sozinha, se justificando pra ninguém: “only a couple blocks, it’s on her way to work, she enjoys it, so?“ (são só dois quarteirões, é no caminho do seu trabalho, ela gosta, e aí?”)
Não sei quando eu pararia de ter assunto sobre esse livro, então paro agora, com uns últimos comentários…
- o livro é hilário, de rir alto em público.
- É brilhante como Pynchon incorpora, nos diálogos, essa mania americana (que eu chutaria dizer que se globalizou a partir dos sitcoms dos anos 90, mas é chute) de responder com entonação de pergunta. Why do you like pizza? Because it’s delicious? (exemplo meu, não dele).
- A história se passa em Nova York, no meio das start-ups de tecnologia, entre o estouro da bolha das dotcoms, em 2000, e os atentados de 11 de setembro (que, aliás, fazem 22 anos hoje). A parte ligada a tecnologia é ao mesmo tempo um delírio paranoico e quase documental.
E o canguru?
Eu moro na Alemanha sem falar alemão. Falo o bastante pra pedir meu café, pro supermercado, padaria. Fiquei orgulhosíssimo quando um cara me perguntou na rua onde havia um restaurante persa, eu entendi a pergunta, sabia a resposta e fui capaz de comunicá-la numa mistura aceitável de língua alemã e gestos universais.
O isolamento linguístico me torna um observador meio caótico do meio cultural alemão, mas nem se eu fosse uma ostra conseguiria ignorar o fenômeno Die Känguru Chroniken. Obra de um escritor, cantor, compositor e artista de cabaré chamado Marc-Uwe Kling, o canguru e suas histórias desde 2009 vem se multiplicando em livros, quadrinhos e, até o momento, dois longas-metragens, tudo sempre um sucesso. Quando minha filha caçula, de nove anos recém completados, me chamou pra ver o filme, não tinha nem como e nem por que resistir.
Até aí nada demais, personagens se desdobrando em subprodutos, nada demais, podia ser a Mônica ou o Cebolinha. É, mas só se o Cebolinha fizesse piadas sobre o pessoal que acreditou em mamadeira de piroca e a Mônica arriscasse a pele a brandir seu coelhinho azul contra as hordas bolsonazistas.
O canguro cita Marx e faz jogo de palavras com o imperativo categórico kantiano. Devo ter perdido metade desses jogos e ironias, entre legendas imperfeitas e meu próprio desconhecimento da matéria. Morri de rir do mesmo jeito. E os alemães riem mais ainda. Adultos de todas as demografias possíveis, menos os eleitores da AFD, e também, e muito, crianças, como minha filha, gargalhando da zoeira com neo-nazistas, terraplanistas e negacionistas de vacina.
Barafunda
Dá pra viver sem “mas”
No parágrafo acima, escrevi… “Devo ter perdido metade desses jogos e ironias, entre legendas imperfeitas e meu próprio desconhecimento da matéria. Morri de rir do mesmo jeito.” Há um “mas” implícito entre “matéria” e “Morri”. Muitas vezes um ponto pode fazer o papel do “mas”. Às vezes, até uma vírgula.
Onde está Wally?
Vi que esses dias Wally Salomão teria feito oitenta anos. No início dos 2000, ia muito levar minha filha mais velha, ainda no carrinho, ao Jardim Botânico, no Rio. Wally estava sempre lá. Por algum motivo, passei um tempo sem ir. Quando voltei, minha filha já andando, encontramos o Wally. Ele olha pra ela e comenta, com a aquela sua vasta simpatia, aquele sorriso de cara inteira: “tá grande ela, né? qualquer dia tá bêbada por aí!”.
Se Wally fosse um personagem, essa frase diria tudo sobre ele. Por um lado, o comentário típico de uma pessoa mais velha. “Nossa, tá grande”, “nossa, tá tão crescida”. Por outro, o comentário de alguém não convencional, o pensamento rápido e na contra-mão, sempre capaz de surpreender. Nesse caso, é na aparente contradição entre forma e conteúdo que ele (o personagem) se revela.
Formas de esperar
Encontrei no meu diário uma entrada de uns cinco anos atrás: “A namorada vai ao banheiro, o namorado fica olhando o celular. Como a gente esperava namorada antes?”
Cozinha
Você pode receber e ler a newsletter sem ter conta no Substack. É ótimo isso. O que não quer dizer que estar no Substack seja ruim. Minha experiência até agora foi positiva, descobrindo textos interessantes que não sei se encontraria de outra forma.
Além disso, há dois recursos interessantes para quem está no Substack.
Um é o “chat”, que permite que uma newsletter se torne também uma espécie de comunidade. Apenas as pessoas que seguem a newsletter podem participar ali, e há a mediação do autor, evitando (em tese) que a coisa desande.
Outro recurso são as “Notes”. Meio que uma timeline, tipo (com o perdão da má palavra) um Twitter dos bons tempos, as notes são um espaço ótimo para descobrir conteúdo e para interagir com os autores. Onde mais, afinal, eu iria conversar com a irmã da Fleabag?
Conversa comigo você também, para que isso aqui não seja uma via de mão-única. Você tem um diário? gosta de ler diários? Algum pra me sugerir? Vale comentar aqui neste post, nas notes ou no chat.
Finalmente
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Tenho um diário de sonhos que adoraria transformar em crônicas. Ainda não sei como (já usando o ponto ao invés da vírgula ☺️).
De qualquer forma vou ficar acompanhando o seu! Adorei 🥰
David, me espanta a forma como não consigo ler nada seu sem que seja com a sua voz!
Seu modo de escrever é super pessoal e único.
Não consigo ler nem com a minha própria voz e nem com essa voz, que não é voz, que fica instalada no meu próprio sistema operacional cerebral. É você narrando. No seu ritmo.
Uma deliciosa leitura. É realmente um diário.
(não consigo me livrar de advérbios)