Conversa com Margaret Atwood, estrutura, escaleta e fantasmas
O que é e o que não é a estrutura de uma história? E a voz da autora de "The handmaid's tale" reverbera na minha cabeça, enquanto os mortos tentam me dizer alguma coisa
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
“Lincoln no limbo”, único romance do extraordinário contista George Saunders, é quase todo uma polifônica conversa entre mortos. A forma do livro, em si, já é uma aventura literária notável, todo feito de citações, numa vertigem de vozes. E essa forma serve à revelação de uma multidão de personagens e suas dores, arrependimentos, fantasmas que fazem o luto de si mesmos. Com humor e lirismo, às vezes simultâneos.
Termino de ler o romance num café meio desconfortável na Sülzburgertraße, já que o meu habitual está lotado. Olho em volta com o que imagino ser aquela expressão de desamparo de quem acaba de ler um livro. O que fazer agora?
Escrever no escuro
Foi aqui em Colônia que descobri os audiobooks, que me fazem companhia pelas ruas da cidade. Em parte porque caminho muito mais aqui do que no Rio ou em São Paulo, em parte porque não preciso ficar esperto para não ser roubado, atropelado, essas coisas. Um dos meus audiobooks favoritos, que escutei inteiro e volto a escutar trechos toda hora é o “On writers and writing”, da Margaret Atwood (que também está no Substack).
Quem narra é a própria Atwood. Sua voz e a cadência da sua fala dão um tom noturno (mas não desprovido de humor) aos seus comentário sobre o que é escrever. E escrever para ela é avançar no escuro com uma lanterna fraquinha, de foco limitado, que não te permite ver muito longe.
O livro, antes de ter o título que tem, existiu numa edição anterior como “Negociando com os mortos”.
Sri Lanka
O café apertado é debaixo da biblioteca regional do bairro de Sülz, onde moro. Prático para quem acaba de terminar um livro e se sente desamparado.
Subo as escadas, vou à seção de livros em inglês. Não estou com tempo para procurar muito, vejo esse “As sete luas de Maali Almeida”, do escritor sri-lanquês Shehan Karunatilada. Lembro que o romance foi bem falado, mas não lembro mais nada a respeito. Pego, no impulso, e levo. Boto Margaret pra falar no meu ouvido, no caminho para o Museu de Arte Asiática, onde pretendo terminar o dia vendo uma exposição.
Depois da exposição, abro o “Sete luas de Maali Almeida” ali no museu mesmo e, para meu espanto, descubro que trata-se de outro romance entre mortos. Fantasmas presos num limbo, como no livro de Saunders.
Quem é ateu e viu milagres como eu
O museu asiático tem uma pequena livraria, onde não costumo entrar porque a maioria dos livros está em alemão. Mas entro. E entre a meia-dúzia de títulos em inglês, encontro, para meu redobrado espanto, o “The Penguin book of the undead”, uma coletânea de textos relatando encontros com fantasmas desde a Antiguidade até a Idade Média.
What the fuck? Aquele livro nem devia estar ali, não tem nada a ver com Japão, China ou Coreia. São histórias de fantasmas europeus e do Oriente Médio. Diz o que você tá pensando, vai, diz: o livro estava ali para mim.
Não existe vida após a morte. Não existe alma. E coincidências são só coincidências. Para mim é assim, sempre foi, desde criança, pois fui ateu precoce. Ao mesmo tempo, nada nunca me impediu de ler sentido nos padrões que o caos me apresenta.
O que será que os mortos estão tentando me dizer? Ou, o que é que eu posso inventar, como se fosse uma mensagem para mim, a partir dessas coincidências? Ler padrões é acima de tudo uma revelação de si mesmo.
Lanterna no escuro
Uma diferença radical, e a se lamentar, entre qualquer conversa sobre escrever literatura e o que se fala sobre escrever roteiro, é a ênfase que se dá a uma espécie de super-planejamento da escrita dos filmes.
Cada vez mais, espera-se que um roteiro seja planejado nos mínimos detalhes antes de ser escrito. Pior, que cada um dos seus passos, cenas, eventos, seja justificado previamente. Quanto mais corporativo o processo dentro do qual o roteiro é escrito, mais forte essa pressão.
Stephen King não acharia isso legal. “I never plot, I hate plot”, ele diz em “Sobre a escrita”. Nem Margaret Atwood. Nem Philip Roth, que escrevia cem páginas antes de sequer saber sobre o quê era o livro. Em textos em que comentam seus processos, esses escritores, e muitos outros, tão diferentes em tudo, concordam nesse ponto: é preciso escrever a história para descobrir a história. George Saunders é outro que diz a mesma coisa. Quase todo escritor, dos best-sellers aos experimentais, diz mais ou menos a mesma coisa.
Atwood explica a metáfora da lanterna ao falar da “A epopeia de Gilgamesh”, um poema épico escrito há bem uns quatro mil anos e uma das mais antigas narrativas que se conhece. Quem escreve se aventura, se lança no escuro - numa treva que é a sua própria imaginação - e, como Gilgamesh, vai ao reino dos mortos, corre perigo, e retorna com uma história.
A ideia do perigo, e não só a de que se caminha sem saber para onde, é essencial. A jornada é de risco, ou não é.
Lanterna no escuro? Mas e a escaleta?
Algum ex-aluno meu, nessa hora, talvez com certa revolta, pergunta: “mas você não ensina que é bom fazer uma escaleta antes de escrever o roteiro?” Sim, claro. “Então que história é essa de lanterna?”.
Sim, escaleta antes de escrever o roteiro. Mas depois de ter a história. A escaleta não é o caminho para descobrir a história, ela é uma ferramenta para encontrar o melhor jeito de contar a história. Tampouco são um bom caminho para descobrir a história essas tantas “estruturas” pré-fabricadas que existem por aí, tipo “jornada do herói” ou “save the cat”. Estruturar um filme não deveria ser o preenchimento de lacunas pré-determinadas numa template.
Craig Mazin, roteirista e showrunner de “The last of us” e “Chernobyl”, concorda. Num episódio do podcast “Scriptnotes”, ele demole, tijolo por tijolo, os modelos de estrutura de roteiro. Você encontra uma transcrição do episódio aqui. É roteirista ou lê roteiros profissionalmente? Então veja lá o que diz o Mazin.
O recado dos mortos
“Sinais vitais”, meu romance a publicar, é uma história cheia de fantasmas. Só depois de escrever foi que percebi isso. Nunca foi meu plano, escrever um romance em que quase todo mundo está morto. Mas escrevi. Foi o que a minha lanterna encontrou no escuro.
“Lincoln no limbo”, “As sete luas de Maali Almeida”, “The Penguin book of the undead”, a voz noturna de Atwood negociando com os mortos, invocando das fronteiras do tempo o Gilgamesh, meu próprio romance e seus fantasmas, todo esse padrão que o acaso me trouxe, ele me diz, sim, alguma coisa. Mas não sobre o romance que eu já escrevi, e sim sobre um outro, no qual venho trabalhando há anos e que está empacado.
A mensagem é que preciso (de novo) pegar minha lanterna e correr perigo na escuridão.
Estou pensando em começar um curso para estudar personagem. Se o tema te interessa, entra em contato respondendo esse email ou pela mensagem direta do app do Substack
A Ghost Story
Há muitos bons filmes com fantasmas. Mas nenhum é tão poético quanto “A ghost story”. Um fantasma de lençol, como nas paródias e nas brincadeiras de criança, que tinha tudo para ficar ridículo. Pois é bonito. Um filme de pouca fala, quase silencioso.
Muito boa a imagem da lanterna no escuro! E concordo com você sobre a questão do roteiro (ao menos no Brasil) ser vista de uma forma mais esquemática e planejada do que deveria. Sinto que é algo que acabou sendo "institucionalizado" no pensamento e nas conversas entre roteiristas, mas que na verdade é melhor pra indústria, que pode ter mais controle, do que pra própria história que se escreve. Enfim, o bom é que esse é um pensamento que dá pra mudar — e acho que um curso sobre estudo de personagem ministrado por você, David, é um bom passo pra isso. Então me interesso sim!
e tem aquela frase do D.F. Wallace, no The Pale King, "every love story is a ghost story", que aparece meio do nada, mexe contigo e segue 'espectrando', pq não dá pra saber bem o que o DFW quis dizer, no contexto (ou fora dele), uma frase-fantasma, e aí hoje descubro que tem até artigo na new yorker sobre ela e o que poderia querer dizer...
https://www.newyorker.com/books/page-turner/d-f-w-tracing-the-ghostly-origins-of-a-phrase?_sp=691a02ae-3f74-46a9-a7bd-6df977ab4a70.1724866476880