De volta à lanterna de Atwood
Afinal, que história é essa de escrever no escuro, onde entra a escaleta nisso? E mais: Gena Rowlands e uma personagem da minha vida
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
A lanterna de Margaret Atwood mobilizou muita gente por aqui, então achei que valia retomar a ideia um pouquinho. O que quer dizer esse “buscar no escuro a história”, de que ela e tantos outros escritores falam? O que isso quer dizer na prática? Para roteiristas, em especial, a coisa parece bem desafiadora, parece ir contra o que todo mundo aprende. Vamos lá, tratar de entender isso.
Dona Neucy
Mas antes, uma personagem. Hoje, 20 de agosto, é aniversário da minha mãe. Oitenta e oito anos - 88! - da dona Neucy.
Meu senso-de-humor vem dela, além do meu nariz. Também vem dela meu senso de diálogo. Dela, da mãe dela, das suas primas, o lado dela da família, em que todo mundo fala ao mesmo tempo. Linhas de falas que se interrompem e se sobrepõem sem cerimônia. Quando fui ler Nelson Rodrigues, entendi na hora a cadência do diálogo, sua estrutura, as vozes, porque aprendi em casa.
Parabéns, mãe, daqui do outro lado do Atlântico.
Fuck the plot
A gente tende a associar a literatura e o cinema dito “de gênero” (isto é, policial, terror, ficção-científica etc.) a trama. Seriam sempre narrativas que funcionam por serem bem “tramadas”, estruturadas como mecanismos de precisão. Mas, se é assim, como é que um dos mais bem-sucedidos autores “de gênero”, Stephen King, vai e diz, no seu “Sobre a escrita”, com todas as letras, “Fuck the plot, I never plot” (foda-se a trama, eu nunca tramo)?
Margaret Atwood também escreve romances “de gênero”, às vezes em mais de um sentido, como no seu “O conto da aia”, uma distopia de gênero (aí no outro sentido) que é o que ela e Ursula K. Le Guin chamam de “ficção especulativa”, para diferenciar da ficção-científica com aliens e espaçonaves. E ainda assim ela nunca fala de plot quando fala de escrever.
Essa galera sai escrevendo? não planeja nada? é assim, uma coisa livre, odara?
Sim, e não. Ou não, e sim. De algum jeito, seja qual for, que funciona para a personalidade de cada um, esses autores em algum momento vão organizar suas narrativas no que a gente que lê vai sentir como uma trama. A trama vai estar lá, como efeito sobre quem lê, o que não é a mesma coisa que tramar tudo num gráfico, que é o que muita gente que não escreve (ou que nunca escreveu nada que preste) tenta nos convencer a fazer.
Mas como você trama uma história sem saber qual é a história?
Descoberta
Falo por mim. Falo, daqui por diante, por experiência própria.
Uma história não é uma linha. Uma história é uma textura composta de personagens, vozes, lugares, objetos, imagens, tempos, gestos, ruídos, elementos que você bota em movimento quando escreve.
Se você não experimenta esses elementos, se não sente como é essa textura no projeto específico que você está escrevendo, como é que você descobre o que a história realmente é?
A gente começa com uma ideia. Essa ideia não precisa ser, raramente é, talvez nem deva ser de cara um começo-meio-e-fim. A ideia inicial pode ser uma meia dúzia de cenas descosturadas. Pode ser uma personagem. Pode ser uma ou duas situações num contexto.
A partir de qualquer dessas coisas, se começa a escrever. A escutar vozes. A ver lugares, imagens. Ideias novas então surgem. Conexões aparecem. Problemas também aparecem. E uma hora, com um pouco de sorte e muito trabalho, você encontra uma história.
E é isso que você enfim encontrou, depois de escrever quase sem rumo, que pode ser estruturado numa trama.
Porque, ao mesmo tempo, uma história é, sim, uma linha: na experiência da pessoa que lê um livro ou vê um filme. Um fluxo, mais que uma linha, de informação, que você que escreve organiza tentando manter aquela pessoa interessada, tentando produzir efeitos sobre aquela sensibilidade, liberando ou retendo informação, por exemplo.
É aí que entra a escaleta? é, mas peraí que eu tenho outros assuntos antes de falar disso.
Semana que vem, ou talvez até antes, vou divulgar as informações sobre o curso que vou dar sobre criação de personagem. Se quiser saber antes, manda um email aqui.
Gena, nosso segredo
No dia em que morreu a Gena Rowlands, me emocionou ver quanta gente, entre meus amigos e conhecidos nas redes, a homenageou. Praticamente todas as atrizes e atores amigos, além de diretores, escritoras, cinéfilos (é claro), mas não só. Foi muito gente mesmo, muito mais do que costumo ver como reação habitual às mortes de artistas.
Não só Gena Rowlands foi uma atriz incomum, tão talentosa quanto fora da curva, uma atriz que arriscava em cena - e chegava lá. Ela foi também a parceira criativa de um cineasta também muito especial, muito único, seu marido e muitas vezes parceiro em cena, John Cassavetes.
Os filmes que fizeram juntos, não canso de vê-los. Mesmo com seus defeitos, que não são poucos, porque são filmes feitos de inquietude e insubmissão. Independentes de fato, no sentido mais aventureiro, quase selvagem do termo. Gena e John, com seus filmes, queriam investigar o que é a vida das pessoas, a vida amorosa acima de tudo, e foram gigantes nisso. E esses filmes são inimagináveis sem a presença assombrosa de Gena Rowlands.
Ela não ganhou um Oscar, não viveu coberta de louros, não era uma celebridade. Quando morrer a Meryl Streep, o mundo vai vir abaixo de homenagens. Mas isso não será uma surpresa. Gena era uma espécie de segredo de cada um de nós. E de repente vimos que esse segredo era de muitos de nós. Tenho certeza que cada um que postou uma foto dela no Instagram esses dias a sentia como algo muito seu, a admiração por ela como algo que fazia e faz parte da sua vida. Era e é assim comigo.
E a escaleta, afinal?
A escaleta é uma ferramenta que você usa para organizar a forma de contar o que você descobriu para contar.
Para quem não é do cinema, “escaleta” é o nome que se dá a um documento ou um gráfico que apresenta a história de um filme em tópicos breves. Quase como se fosse um índice do que ainda não foi escrito, para quem escreve seguir escrevendo e não se perder.
Por ser breve e tópica, a escaleta facilita mudar coisas de lugar. Na escaleta, você pode decidir que a cena X fica melhor antes da cena Y, ou que vai começar o filme pelo final, ou qualquer outra transformação da forma de contar.
Costuma-se dizer, “não comece a escrever um roteiro sem ter feito a escaleta”. Sim, e é por isso que tanta gente pensa que a escaleta é o início de tudo e tenta encontrar a história que vai contar na escaleta, ao “escaletar”.
Até é possível. Mas não é bom. Porque a escaleta é objetiva demais, árida demais para isso. Dizer que você não deve começar o roteiro sem escaleta não implica que você não pode escrever nada antes da escaleta.
Pode e deve. Escrever livremente, sentir as texturas do universo de ficção que você está criando, devia vir antes. Para chegar à escaleta, ou a qualquer outro método de tramar uma narrativa, com uma riqueza de conhecimento sobre o mundo que você vai narrar.
David,
você sabia que a Margaret Atwood tem um livro não-publicado na floresta do futuro na Noruega? https://www.atlasobscura.com/places/forest-of-the-future-library
Achei um projeto lindo!
Beijos,
Clarisse
Sobre essa questão da escaleta: no caso de uma escaleta de roteiro de telenovela/série, ela é bem necessária, não? A parte que você do escrever livremente para sentir melhor a história, viria antes, por exemplo, em um primeiro rascunho de sinospe?