Diálogo, uns palavrões, forma e função
Perco as estribeiras com um autor, mas no fim recupero a calma e termino dando dicas práticas de diálogo
Murmuro palavrões, impropérios, ofensas, entredentes, no café, no meio da rua, na minha lingua materna e na outra, que é a do meu dia-a-dia e que é também a do livro que estou lendo: fuck you, mister Foster Wallace, fuck you so very much. Xingo, em português e em inglês, de um despeito puro que é uma forma elevada de admiração. O cara é foda.
O livro se chama "The broom of the system". Tem um puta jeitão de Thomas Pynchon, acho que o jovem David Foster Wallace, quando o escreveu, estava sob fortíssima influência de Pynchon (de quem falei aqui e também aqui), coisa que entendo, porque Pynchon é outro cara foda.
(repeti “Pynchon” três vezes no parágrafo anterior porque não repetir faria o parágrafo mais truncado, menos fluido, menos coloquial. às vezes é tudo uma questão de escolher o mal menor)
Mas tem algo no romance que não me parece que venha de Pynchon nem de ninguém. Uma habilidade com o diálogo que não lembro ter visto antes em literatura. Para mim, que aprendi diálogo na dramaturgia, acima de tudo com Nelson Rodrigues (falando em ser foda...), diálogo literário quase sempre é bem blé, bem dá pro gasto.
Pois meu xará faz miséria com diálogo. Não tô de brincadeira, sem exagero. Miséria. Vou dar um capítulo só como exemplo. O capítulo é só diálogo. Não há uma descriçãozinha. E mais, não há nenhuma indicação explícita de quem está falando. O capítulo começa e, pá, na lata, lá vem o diálogo. who da fuck is saying this? what da fuck's going on? Você descobre. Se você está prestando atenção no que está lendo, você vai descobrindo. É de cair o cu da bunda.
(estou desbocado hoje, você por favor me desculpe, mas é o arrebatamento. a primeira vez que fui tentar fazer análise, larguei porque olhava para a analista, uma senhora tão bem composta que eu até via um gato imaginário aninhado no seu colo, e, olhando para ela, não conseguia me imaginar falando palavrões, e eu não consigo falar de nada que seja muito emocional e importante sem palavrão. eu nem sequer penso sem palavrão)
Cubo mágico
Mas não é só isso. Pelo diálogo apenas, intuimos as ações físicas, os movimentos das personagens no espaço. E, também através de um diálogo em que nada é explicitado, entendemos o próprio espaço. Sabemos, por exemplo, que as personagens a falar estão próximas a uma terceira, cujo desaparecimento é o grande mistério do romance, apenas porque há referências ao calor no ambiente.
Nem todos os capítulos são assim, e isso é outro mérito. É como se, a cada momento, fosse preciso se reajustar, com maior ou menor intensidade, à forma da narrativa. É preciso aprender a ler o livro a cada momento. É um prazer incrível isso, pra mim. Pra muita gente deve ser um inferno, e eu entendo muito bem que seja.
As pessoas gostam de dizer que curtem livros, filmes, que as fazem pensar. Mas em geral estão falando de fazer pensar no sentido de temas, ideias, conteúdo. Ok, beleza, mas aqui o jogo é outro. O que o livro demanda, e eu adoro livros, filmes assim, é uma participação na sua própria construção. O esforço é parecido com o de jogar xadrez, montar um cubo mágico, jogar um game complexo, decifrar enigmas. Gosto muito disso.
E ainda por cima, o romance é engraçadíssimo. Rio alto e em público, às vezes surpreendendo as pessoas em volta. Como aquele cara de suspensórios, no café. Paro de ler um instante e observo, com desgosto, o cara de suspensórios.
Forma e função e Ezra Pound
Por que o desgosto? A forma como ele está vestido me incomoda. Eu não presto atenção em roupa, e nem tenho vocabulário para falar a respeito. Aqui, na Alemanha, as pessoas se vestem de tudo quanto é jeito, ninguém repara e eu acho isso uma bênção. Mas o cara de sunspensórios me desgosta. Não deve ser verdade, mas a impressão que eu tenho é de que nunca vi ninguém tão mal vestido.
Ele é muito magro e muito alto e está de pé. A camisa é marrom clara, a calça também. E os suspensórios, listrados de verde e vermelho, sobem pela barriga e tórax do cara em linhas paralelas como trilhos, muito estreitas.
Veja, suspensórios não costumam formar linhas paralelas, e por um motivo: os homens que os usam em geral tem uma barriga avantajada. Na verdade, a barriga é a razão de ser dos suspensórios, pois funcionam melhor que cintos, para quem tem uma barriga grande. Na pior das hipóteses, o usuário de suspensórios tem uma certa massa corporal, no mínimo simulando um sentido para os suspensórios. Claro que também se trata de uma opção de estilo da pessoa. Mas há uma razão que acompanha, subliminar, a opção. O estilo é calcado na funcionalidade.
Quando pensei nisso entendi porque o cara me parecia tão mal vestido: porque aqueles suspensórios eram aparência contrariando a funcionalidade, na verdade contrariando até qualquer ideia de função. Magro demais, quase esquelético, quase dois metros de altura, ele fazia com que os suspensórios parecessem uns cabos pendurados, frouxos.
Não ter função nenhuma, ser só decorativo, é uma coisa, ser antifuncional é outra.
Então, é como movimento de câmera inútil, feito para impressionar. Aquela câmera na mão tremidinha que sai de foco sem razão de ser na maioria dos documentários true crime da Netflix. Sabe qual é, né? Então. O poeta Ezra Pound, em seu "ABC da literatura", escreveu, talvez (mas apenas talvez) como provocação: "uma definição de beleza: adequação ao objetivo".
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
Uma dica de diálogo
É comum: muitos roteiristas esquecem que as ações estão sendo vistas, e encaixam a ação no diálogo. Perdem com isso ritmo e verdade. Quer ver? Uma pessoa vai entregar algo a outra. Digamos, uma tesoura. Vamos chamar a pessoa que entrega a tesoura de Foster e a que recebe de Wallace, numa singela homenagem.
Muita gente escreve assim:
FOSTER|
Wallace, toma aqui a tesoura.
Só que se a tesoura está na mão de Foster, Wallace, e o público, veem a tesoura. Então podia ser só:
FOSTER
(com a tesoura na mão)
Aqui.
Ou, se por algum motivo você quer dar o nome do outro personagem:
FOSTER
(com a tesoura na mão)
Wallace.
É impressionante que um escritor como David Foster Wallace escreva diálogos num meio não visual, como a literatura, em que se enxerga as coisas sem que estejam descritas, e tantos roteiristas, trabalhando para um meio visual, se esqueçam disso e lancem tudo na fala.
Dica dentro da dica
Quando escrevo cenas, eu muitas vezes me movimento, tentando visualizar onde no espaço estão as personagens e como elas poderiam interagir. Se você tem uma visão muito concreta da ação e escuta as falas (falar o que se escreve, em voz alta, também é bom), a chance do do seu diálogo melhorar é boa.
Vizinhança
A revista Morel tem uma newsletter, que tem o título irresistível de “Invenções de Morel”. Quem edita, a revista e a news, é o bamba Ronaldo Bressane. Recomendo.
Aleatório
Escolher o vídeo que entra no fim de cada edição dessa newsletter às vezes dá mais trabalho que escrever. Então, porque hoje tô meio punk, vai assim no susto: “Ontem eu nem a vi / sei que eu não tenho um álibi…”
O Foster Wallace era super fã de pynchon (quem eu acho um desafio ler… comecei arco íris da gravidade e parei depois de uma viagem que o personagem fez pela descarga que eu só fui entender o que tava acontecendo bemmmm depois), um dos autores prediletos dele. E realmente, agora parando para pensar, ele mandava muito bem nos diálogos. Graça Infinita tem muito diálogo bom que vc nem vê passar. Outro cara que mandava bem nos diálogos é o Comarc Maccarthy. Estilo totalmente diferente, habilidoso igual.
Amei o seu arrebatamento.... comecei a ler "Infinite Jest" há anos, quando a leitura tinha parado de fluir pra mim, ou seja, hora errada! Fui espiar e ele continua no kindle me aguardando. Você me convenceu a voltar nele. :)