O cachorro engarrafado
Uma edição meio ordinária, que nem passa no bafômetro, com Carrère, Amis, apresentação de personagens, selfies e uísque
Em trânsito
Envio esta newsletter pelo wifi do vagão 21 do trem ICE 201, Köln-Frankfurt, primeira etapa da viagem ao Rio. De Frankfurt, um vôo da TAP até Lisboa, de lá o noturno até o Galeão.
Gosto de escrever a newsletter num tempo só dela. Não deu. Esta foi aos trancos ao longo dos últimos dias, um post precário, que periga não conseguir fazer um quatro, alinhavado entre trabalho, preparativos, perrengues, deslocamentos e um ou dois drinks.
A personagem entra em cena
No primeiro capítulo de “Inside story” (falei sobre o livro antes, olha lá ), seu autor, Martin Amis, convida o leitor a se hospedar em sua casa. Mostra-lhe o quarto, apresenta-lhe o gato. Mais adiante, a casa vai pegar fogo, mas o leitor escapa, parece.
Um primeiro capítulo, na verdade mais um prólogo, em que temas do livro são apresentados de forma explícita, enquanto, de forma implícita, entendemos o quanto o livro é também sobre os atos simbióticos de ler e escrever.
No capítulo seguinte, ele apresenta Phoebe Phelps, uma das suas personagens principais, e para isso usa um caleidoscópio de estratégias narrativas que é como uma sequência de dribles.
Os dribles
O capítulo é contado em (ou a partir de) três tempos.
Anos 70. Amis vai beber com seu amigo Christopher Hitchens e conta a ele que conheceu essa mulher, Phoebe Phelps. O primeiro encontro, o segundo, os primeiros momentos da relação nada fácil, são narrados nesse vai-e-vem entre o presente no bar e um passado recente, mas que não é bem passado porque a história com Phoebe continua.
O terceiro tempo é um outro presente, o presente em que Amis escreve “Inside story” e é um narrador onisciente, comentador. Às vezes, quando escreve a partir desse lugar, Amis se refere ao jovem Amis na terceira pessoa. E faz transiçòes entre esse ponto-de-vista e o de Amis contando o caso ao amigo. Isto é, tanto o jovem Amis quanto o velho, seu narrador “último”, podem narrar em terceira ou em primeira pessoa, e isso mantém o relato vívido.
Embora na superfície seja sobre Phoebe, o capítulo, ele também apresenta Hitchens. A história da amizade entre ele e Amis e a narrativa da doença que acabaria por matar esse grande amigo do autor são centrais no romance. E, sim, é um romance. Não há dúvida. É autobiografia, e é autoficção, e é romance.
Esponjas
Só nesse capítulo, Amis e Hitchens bebem mais do que eu bebi ano passado inteiro. Eles são da geração do uísque, tanto ou mais quanto do cigarro.
Uma das melhores coisas do documentário sobre Vinicius de Moraes, que Miguel Faria Jr. dirigiu, é a sequência em que Tom e Vinícius se lamentam de que suas mulheres escondiam ou mesmo jogavam fora o uísque deles. Numa profusão de diminutivos, choram a perda do destilado com a sofreguidão da criança que perdeu o ursinho de pelúcia. Amis e Hitchens são dessa escola.
Mais uma dose
Peço um uísque no Metronom e o barman, proprietário e dj da porra toda me dá um outro. Não por engano (ou para me enganar), mas porque na opinião dele era o que eu devia tomar. Provo, gosto. E ainda é mais barato do que aquele que eu queria.
O Metronom, já falei dele antes, chega a ser uma atração turística daqui. O bar, minúsculo, as paredes cobertas por prateleiras de discos de jazz, existe desde 1968 e me parece que não se mexeu nem na nicotina acumulada nas paredes desde então. O lugar vive lotado, público de todas as idades. Gente que ama e conhece jazz, gente que nem sabe que isso existe. Eu me situo no centro desse amplo espectro.
Atração turística, mas nunca vi tirarem um selfie ali. Nunca. A cultura do celular e da foto na Alemanha é muito diferente da nossa. Claro que fotografam, claro que fazem selfies. Mas é muito, mas muito menos frequente.
Eu gosto disso. É bom, por exemplo, ver uma atividade das crianças na escola da minha filha sem ter uma barreira de celulares à frente.
Ao mesmo tempo, gosto de fotografar também. Cometo meus selfies, como todo mundo. E gosto de fotografar as coisas e situações como quem toma notas.
Selfies ancestrais
Dei uma festa de aniversário, acho que em 2000 ou 2001, em que eu fazia uma foto junto com cada amigo que chegava. Eram selfies “avant la lettre”, com uma câmera analógica, de filme mesmo, de mandar revelar. Era o que tínhamos, assim era o mundo.
Achei essas fotos outro dia e fiquei feliz de ter esses registros. De repente, eles me pareceram muito valiosos. E são, porque não temos muitos testemunhos visuais das amizades, dos amores, anteriores à inflação das imagens que a gente tem agora.
A língua é minha pátria
Adoro a palavra perrengue. Pesadona e polissêmica.
Por que se diz “uma selfie”, se selfie é redução de auto-retrato, substantivo masculino? Sei lá, pegou assim, tá ótimo. Mas eu meio que não consigo, falo “um selfie”. Tá tudo bem, tá tudo certo.
Num dos primeiros posts aqui, falei que não existe sinônimo. Não saber disso leva a tropeções perigosos. Tenho visto escreverem “pessoa ordinária” no sentido de pessoa comum, mediana. Claro que é um anglicismo ("ordinary people”). E em inglês é esse mesmo o sentido. Em português do Brasil (não sei em Portugal), dizer que uma coisa ou pessoa é ordinária sempre foi ofensa, quer dizer de baixa qualidade, de baixo nível. Esta newsletter, esta semana, ficou bem ordinária. E nem mesmo é bonitinha.
Lá em cima, falando do livro de Amis, eu já ia escrevendo “dribles desconcertantes”. Acontece que “dribles desconcertantes” é um sintagma cristalizado, uma espécie de tijolo pré-fabricado. Quebrei a cabeça atrás de outro jeito de falar. Deixei só dribles. Pensando bem, “drible” já dá a ideia que eu queria.
Cartinha
Minha mãe encontrou, um dia desses, uma carta que escrevi ao Papai Noel. Era uma carta breve e que justificava sua brevidade nesses termos: “vou direto ao assunto, detesto rodeios".
Detesto até hoje. Portanto, “dribles”, e só. Tá bom. Aliás, em futebol existe aquela expressão, “o drible a mais”, quando o jogador perde o gol por exagerar nas fintas.
O Reino
Era para eu ter escrito sobre “O Reino", do Emmanuel Carrère, no primeiro post da “Ein Filterkaffee”. Tinha acabado de ler e estava impressionado. Mas não coube no número um. Ontem, decidindo o que iria ser minha leitura de avião, baixei o último dele, “Ioga”, no Kindle. Lembrei do “O Reino”.
“O Reino”, como tantos livros do Carrère, conta ao mesmo tempo uma história pessoal do autor e uma outra, maior ou diferente. Nesse livro, a história pessoal é a relação dele com a fé. A outra história é a da escrita dos evangelhos.
Não existe pessoa mais ateia que eu. Pode existir tão ateia quanto, mas não mais. É como a velocidade da luz: ultrapassá-la é uma impossibilidade teórica. Não é nem apenas que eu nào acredite em Deus, em nem acredito em acreditar. Pois foi fascinante ler sobre como os evangelhos foram escritos, o que há de factual que pode ser comprovado, as contradições, as diferenças de estilo. E mais…
… Carrère faz uma leitura de escritor dos evangelhos, um close reading em que discute as decisões narrativas, as escolhas, as formas de narrar. Investiga, acima de tudo, Lucas, que parece ser o mais interessante (e de certa forma moderno) dos autores dos evangelhos. Em parte, o livro é também uma biografia de Lucas.
O livro me capturou de tal forma que eu chegava a ficar de mau-humor quando não podia ler. Não abalou meu ateísmo, mas aumentou minha fé na literatura.
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
hahaha, eu achei bem bonitinha.
Agora serei obrigada a ler um livro sobre os Evangelhos, olha onde você me meteu. =)