Quem é que está falando, afinal?
A personagem é você, a personagem não é você, ou a personagem é um Playmobil
Estou pensando em começar um curso para estudar personagem. Se o tema te interessa, entra em contato respondendo esse email ou pela mensagem direta do app do Substack
Vi que "Kairos", da Jenny Erpenbeck, vai ser publicado em português. Estava para falar do livro desde que o li, já uns bons três meses atrás.
Três meses. Três dias. Sou só eu ou a medida do tempo anda esquisita? A minha sensação é ao mesmo tempo que li o romance no máximo uma semana atrás e de que o li há anos. Outro dia brinquei, mas era brincadeira só até certo ponto, que parece que só existe hoje, ontem e passado distante.
De novo, não sei se isso está se passando com outras pessoas. Aliás, o que se sabe sobre outras pessoas? Só sei que tem sido assim, um presente que vira passado distante muito rápido, um futuro que se esconde detrás de um horizonte impossível de adivinhar.
Falando em tempo, descobri esses dias um podcast chamado “Case 63” em que Julianne Moore é uma psiquiatra que atende um paciente que diz que veio do futuro. Até agora (estou no episódio seis), vai bem.
Dramaturgia em estado puro
Acho que um bom podcast de ficção é a dramaturgia perfeita pra mim. Como consumidor e acho que, se um dia tiver a chance de fazer, também como escritor. Uma forma tão pura, se você pensar.
Cabe qualquer coisa ali. Pode fazer road movie, como “Alice isn’t dead” (o podcast, existe também audiobook, mas esse não escutei). Pode fazer comédia absurda e mórbida como “The horror of Dolores Roach” (medíocre como série na Amazon, mas genial como podcast).
É como se fosse o casamento perfeito entre literatura e cinema, por uma fração do custo desse último. Meia dúzia de pessoas podem fazer um podcast de ficção.
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
Quem é que está falando?
Quando se fala de personagem, fala-se pouco de algo essencial: quanto de si se investe numa personagem?
“Madame Bovary sou eu”, disse Flaubert quando pressionado a revelar a identidade, na vida real, da sua protagonista. A quantidade de contradições interessantes a explorar nessa única frase chega a dar vertigem.
Não sou Flaubert, nem nos mais desarrazoados dos meus delírios, mas acho que posso falar no assunto. Quase todos os personagens que escrevi tem algo meu. Ao mesmo tempo, nenhum personagem que escrevi sou eu, eu não sou nenhum deles.
Se você não põe coisas suas nas personagens, você põe coisas de outros personagens que você viu. Ok, muita coisa vem da observação dos outros. Dá no mesmo. O que eu quero dizer é que, sem o investimento de elementos reais seus (próprios ou observados), seus personagens são figuras de Playmobil, é inevitável cair em clichês.
Por outro lado, se a personagem é, ou você pretende que seja, de todo você… O risco de estar escrevendo mera catarse, para tratar da própria cabeça e sem interesse pra ninguém, é bem grande. Ao mesmo tempo, há sim autores e autoras que que fazem da ficção confessional de si algo extraordinário.
Quem escreve vive uma constante tensão entre revelar e esconder. As personagens são o campo de batalha onde essa tensão se expressa. Não tenha medo de entrar nessa guerra. A cada personagem, invista algo seu. Esconda algo seu. Dá um certo nervoso, mas é legal.
Kairos e a leitora que não soube esperar
Fui adicionar "Kairos" no Goodreads e, contrariando meu hábito de não ler comentários, bati o olho numa nota, negativa, deixada por uma leitora, que dizia ter largado o livro ainda no inicio, porque não aguentava mais histórias de amor entre homens mais velhos e mulheres jovens.
Escrevi, em resposta ao comentário, que entendia muito bem a repulsa que uma história desse tipo causava, mas que se a leitora fosse mais longe no livro veria exatamente a desconstrução desse tipo de enredo. Durante toda a segunda parte do romance, Erpenbeck vai fundo no abuso a que Hans, homem de meia-idade, devagar e insistente, vai submetendo a jovem Katharina.
A primeira parte é romântica e erótica. Escrita de dentro de uma vertigem de paixão, erótica mas não apenas erótica, que inebria os dois personagens. E é longa essa primeira parte. Como se a autora nos quisesse fazer viver ao máximo o envolvimento dos dois.
A segunda parte é um relato tão longo quanto, talvez mais longo, em que aquilo ali apodrece. Apodrece feio. E apodrece porque o cara é um escroto. É doloroso esse relato, porque, colados à inexperiente Katharina, ficamos na posição de sofrer por ela ao mesmo tempo em que percebemos como está sendo manipulada por um homem que é, basicamente, um medíocre.
Mas somos nós que percebemos o abuso. Katharina, de dentro da manipulação e da neurose, sente-se culpada, coloca-se justo na posição em que Hans (cujos pensamentos também acompanhamos) deseja que ela se coloque.
Em nenhum momento, Erpenbeck deixa que Katharina se dê conta do que está se passando, não de verdade, e por isso o livro não explicita a ideia de abuso, como talvez tantos leitores e leitoras de hoje esperem. Katharina não se dá conta do que está se passando. Pior, ela se sente culpada. Como tantas vítimas de abuso se sentem.
Assim caminha a humanidade
Escrevi essa resposta para a nota da leitora do Goodreads, mas não enviei. Achei que a chance de levar uma patada era grande. Eu não ia desautorizar o que ela estava dizendo, não ia contrariar o que ela dizia, pelo contrário, ia só acrescentar uma informação. Mas vocês acham que hoje em dia, como é a internet, como são as coisas, tinha alguma chance disso virar um diálogo civilizado?
Não tinha. Não há. Abaixo da nota da leitora que não terminou o livro havia inúmeras outras agradecendo o aviso e dizendo que bom saber, que agora é que não iam ler "Kairos" de jeito nenhum. Que percam um livro extraordinário, e que lida com coragem e habilidade literária espantosas com um assunto tão importante quanto a dinâmica neurótica, a dinâmica de poder, a dinâmica complexa de uma relação desigual.
Post-its
Na foto do meu exemplar de "Kairos" vocês vão ver muitas páginas marcadas. Não, ali não estão meus trechos favoritos, ou não necessariamente. O que fui marcando foram os momentos em que a dinâmica entre Hans e Katharina vai se montando. Também marquei os pontos em que há paralelos entre a história dos dois e a do fim da Alemanha Oriental.
A história se passa nos três anos até a reunificação alemã, e os personagens são alemães do lado comunista. Para mim, vivendo aqui (no que era o lado ocidental), esse tipo de enredo tem um interesse especial. Há um momento, por exemplo, em que Katharina consegue um visto para visitar a avó em Colônia e passa por lugares e usa linhas de transporte público que eu conheço.
Há, sem dúvida, uma alegoria em construção. De alguma forma que eu vislumbro, mas não entendo de todo, o relacionamento entre Katharina e Hans, e seu degenerar-se, espelha a história da Alemanha comunista e do seu fim. Mas o romance funciona e é muito bom independente dessa leitura.
Pequenas barbaridades culturais
O pessoal curte postar trecho de livro, e eu acho isso legal, e posto também. Mas tem um problema: quando se pesca um trecho de uma obra de ficção, se coloca entre aspas, e se atribui aquilo ao autor.
O problema é que o autor escreveu, sim, aquilo, mas não disse aquilo. Quem disse foi uma personagem ou uma narradora dentro do livro. Que pode estar dizendo algo que a autora não pensa, ou até que abomina.
Tem essa conta no Threads, chamada Literature Quotes, São só posts assim. Olha esse:
Se você lê isso assim, pode até parecer que a Ali Smith é uma esotérica que acredita em fantasmas. Só que não foi a Ali Smith quem disse isso, foi uma narradora (ou narrador, agora não lembro) nesse seu romance brilhante chamado “Primavera”.
A galera faz essa pequena barbaridade cultural o tempo todo. Pega um trecho que lhe diz alguma coisa, que diz alguma coisa que a própria pessoa pensa, às vezes, e coloca como se dito pelo autor. E faz isso de boa fé, porque acha mesmo que a autora disse aquilo.
Não acho que haja nada errado nisso, o que me parece errada é a atribuição. Quer ver uma solução? Olha:
“We move from one invisibility to another”
- em “Primavera”, de Ali Smith
Você pode achar que é chatice minha. Acontece que há um perigo na confusão aparentemente inofensiva entre autor e narrador, autora e personagem. Às vezes isso leva a endeusar escritores ao colocar palavras de uma personagem na sua boca, mas às vezes também os condena por coisas que nunca diriam.
Inúmeros trechos de “Kairos”, quando Erpenbeck escreve do ponto-de-vista de Hans, soam sexistas, machistas. Sim, soam porque são. Mas não são falas da Erpenbeck, são falas de seu personagem Hans, que é narrador de metade do livro. Várias falas de Katharina soam submissas, ingênuas e tal. Porque são.
Um romance, uma peça, um filme, escritos de dentro do fascismo, ou da misoginia, ou do racismo, precisa correr o risco de pensar como um fascista, um racista, um misógino. Só que, no clima cultural que temos, o risco para quem escreve não é desprezível.
Fantasma
Personagens são meio fantasmas. Como Cathy, cantada por Kate.
Para quem está na sala de aula, tá bem complicado isso de não ler porque tem uma história x ou y, ou uma passagem desse ou daquele jeito. Existe uma pressão para que livros com gatilhos saiam das ementas. Parece que aquela camada de ficção que nos permitia experimentar, com todas as contradições disso, está se diluindo.
(E sobre as pequenas barbaridades, totalmente de acordo. Quando tem um narrador saliente, como Memórias póstumas ou Grande sertão, se transforma num pequeno absurdo...)
Comecei a escutar podcasts de ficção após ler essa newsletter e estou adorando. Dolores Roach não ter um final foi frustrante (mas a sua dica foi ótima!)