Questões de gênero
Terror, sci-fi, policial, comédia romântica... como lidar com gêneros e generalizações? Umas dicas práticas para quem escreve, algumas leituras e uma certa avacalhação.
Em outubro vai rolar meu curso “A Criação de uma Personagem”. Mais detalhes no final desta edição
Frase de efeito
Rodrigo Fresán, em seu romance “O fundo do céu”, diz (cito de memória) que “um escritor de ficção científica é alguém que sabe pouco de ciência e menos ainda de ficção”. Como resistir a uma frase dessas? Ela ser verdadeira ou não fica em segundo plano diante do efeito. Mas com que joga esse efeito, esse sarcasmo?
Uma piada não funciona se emissor e receptor não compartilham um kit mínimo de valores. Fresán é um prestigiado autor literário latino-americano. Seus leitores não são leitores ingênuos. Sua frase é emitida desse lugar. Ele e seus leitores compartilhamos uma posição de suposta superioridade. Os autores de ficção-científica escrevem literatura de gênero, ele escreve literatura e ponto. Literatura literária, digamos.
Narradores melancólicos ou francamente depressivos, quase sempre escritores. Muitas vezes poetas (se o autor for chileno, com certeza poetas). O narrador é escritor e as histórias dos romances envolvem escritores, livros, contos, poemas, vida de quem escreve. Alguma metalinguagem, como uma piscada de olho. Uma consciência da América Latina como periferia da cultura, misturando complexo de vira-lata com orgulho envergonhado. Já mencionei a melancolia?
Fresán escreveu livros assim. E também Alejandro Zambra. E também Alan Pauls. E também Bolaño, acima de tudo ele. Não seria, então, o “romance contemporâneo de autor literário latino-americano” um gênero? O que define um gênero? Não seriam características comuns de forma e conteúdo? Então.
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
Silêncio na biblioteca
Vim trabalhar na biblioteca da universidade, quase deserta porque estamos nas férias de verão. O prédio deve ser dos anos 60. Fácil, fácil imaginá-lo como a locação de um filme retrofuturista. Algo como o “Alphaville”, de Godard, em que lâmpadas comuns, postes de iluminação pública e ventiladores compõem a ambiência sci-fi.
No silêncio da biblioteca me imagino Lemmy Caution, que ao final de Alphaville parte com Natacha von Braun para os “pays extérieurs”. Hoje vivo nos “pays exterieurs”.
Alphaville é um filme que a gente adorava (e ainda adoro). Quando digo a gente me refiro a todo mundo que era jovem nos anos 80 e frequentava festivais de cinema, cineclubes. Não éramos poucos, mas óbvio que não éramos a maioria da população.
Por que Alphaville?
Capitão Eléctron contra a ameaça venusiana
Gostávamos de “Alphaville” pelo mesmo motivo que gostávamos de “Blade runner”. Filmes que tinham como fonte o cinema de gênero. Aliás, exatamente os mesmos gêneros: a ficção-científica e o “film noir”.
Nos dois filmes, a voz off do narrador ecoa as adaptações cinematográficas dos romances de Dashiell Hammett, Raymond Chandler e outros. A atitude dos protagonistas também. Sem falar nas capas que usam, emprestadas de Humphrey Bogart.
A gente gostava disso e queria fazer essas coisas também. Só que é claro que não ia rolar. Ninguém ia financiar filmes assim, ainda mais feitos por iniciantes. Mas isso não impediu que alguns colegas da Escola de Comunicação da UFRJ realizassem “Capitão Eléctron contra a ameaça venusiana”.
As referências eram outras. Mais “Nacional Kid” do que qualquer outra coisa. E um espírito que, não sei se inconscientemente, ecoava o chamado “cinema udigrudi”.
A palavra é esculhambação
“Quando a gente não pode fazer nada, a gente se avacalha e se esculhamba”. Essa frase, que está em “O bandido da luz vermelha”, de Rogério Sganzerla, define o “udigrudi” (forma esculhambada de dizer “underground”). Define muita coisa, se a gente pensar bem, mas isso já é outro assunto.
O curta da galera da Eco é exatamente isso. Uma certa avacalhação. Mas é a avacalhação que curtíamos, era o “Blade runner” que dava pé, e há mais por trás disso do que uma mera brincadeira. Há uma atitude cultural que não é diferente, em essência, da antropofagia de Oswald. Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos também flertaram com a esculhambação, em filmes como “Câncer” (Glauber) e “Quem é beta?” (Nelson). A esculhambação é o gênero brasileiro por excelência.
O cyber-absurdismo
Um grande amigo dos meus tempos de Eco é o Zé José. O Zé José, dizem, nasceu Eduardo Souza Lima, e é com essa alcunha que ele assina seu romance demencial (no bom sentido) “Martina no vale do germânio”.
Houve romances udigrudi, embora talvez não tenham sido chamados assim, como “Os morcegos estão comendo os mamãos maduros”, de Gramiro de Matos (o Ramirão Ão), e “Panamérica”, de José Agripino de Paula. Eu diria que mais que à ficção científica, a “Martina” do Zé se filia a essa tradição de livros descacetados, em que a gente que lê é incapaz de imaginar o que virá a seguir, nem em termos de enredo nem em termos de linguagem.
Braulio Tavares definiu “Martina” como cyber-aburdista”, e eu não encontro definição melhor. O livro traz o espírito do que curtíamos nos anos 80, de “Alphaville” ao “Capitão Eléctron”, com a devida dose de “udigrudi”, ao contar a história de Moisés, que, como Dante no Inferno, tenta encontrar nas profundezas de um ciberespaço lúbrico a sua Martina, sua obsessão erótica, e que para isso precisa fugir do poderoso mecanismo de busca que ele mesmo criou.
E os parágrafos se sucedem como se cada um deles fosse um curta-metragem que tivesse por objetivo desconcertar quem lê, enquanto Moisés busca sua Martina.
Gênero, modo de usar
E aí, roteirista, você é contratada para escrever um thriller, um filme de horror, uma comédia romântica, ou tem um projeto de série de ficção científica. Como lidar com essa questão do gênero? Vou dar umas sugestões, adote ou não por sua conta e risco.
Pensar em gênero não serve pra nada. Mas serve. Se você usar o guarda-chuva mais amplo, isto é, “este é um filme de terror”, não serve para nada. Porque, por exemplo, “O iluminado” e “O massacre da serra-elétrica” são ambos filmes de terror, mas não os convide para a mesma mesa.
Existe o terror sangue-e-tripas (“Saw¨), existe o terror poético (“Os outros”), existe o drama de terror (“Sinister”), existe o terror de susto (“Halloween”), existe o terror de suspense (“O Babadook”), existe o terror social (“Get out”)… O mesmo vale para os outros gêneros, todos se subdividem quase que infinitamente.
Já se você encontrar, dentro do gênero, a “filiação”, a “família” à qual seu projeto pertence, isso pode ser muito útil. Útil como? Identificando o funcionamento desses filmes, descobrindo quais problemas seus autores tiveram que resolver (e como resolveram, ou não), e pensando em como aquilo se aplica ao que você está fazendo.
A coisa mais útil é conhecer os “tropes” de cada subgênero (ou família). Um “trope” descreve um dispositivo ou motivo recorrente nas narrativas. Pode ser um clichê, um arquétipo de personagem, uma situação comum ou um elemento de enredo que o público reconhece com facilidade. Por exemplo, “a família que se muda para uma casa sinistra”. Este é um “trope”. É um clichê? depende do uso. Em “Os outros”, o clichê é brilhantemente revertido.
Conhecer os “tropes” te permite manipular expectativas. Você joga com algo que o público acha que conhece. Mas não é bem o que ele espera. Ou é exato o que ele espera, mas leva a algo diferente. Ou é apenas ligeiramente diferente, mas essa minima diferença tem um peso enorme.
Gênero, não faça
Ah, então lance é estudar esses “tropes”? Olha, depende. Porque uma coisa que não dá certo, nunca dá certo, nunca, é a pessoa que não curte um gênero, não tem o hábito de ler ou assistir e se mete a fazer porque, sei lá, tá na moda ou alguém num evento qualquer disse que é isso que os “players” estão comprando.
A voz que te empurra a escrever num gênero que você não curte é uma voz das trevas. Benza-se. Cubra-se de alho. Desenhe um círculo de sal à sua volta e ignore essa voz. Porque você vai competir com pessoas que amam aquele gênero, que leem e assistem essas coisas com prazer há anos, e essas pessoas vão fazer melhor do que você.
As formigas do escritor
No livro “A espinha dorsal da memória”, de Braulio Tavares, há um conto chamado “Os Ishitarianos estão entre nós”. No conto, um escritor se debate para escrever a história de um povo, os Ishitarianos, capaz de dominar a humanidade, ao mesmo tempo em que seu açucareiro é tomado pelas formigas. Na verdade, de início não é de todo claro que o narrador está escrevendo a história dos Ishitarianos, parece que eles existem (para ele, que os teme), e o lugar do açucareiro no conto não é tão central. Os dois entendimentos vem ao mesmo tempo, e ao final, quando o narrador vence as formigas, as duas narrativas se sobrepõem e fica totalmente claro que se trata de um conto sobre escrever.
O narrador em “O fundo do céu” diz, em algum momento (de novo, cito de memória), que aquele “não é um romance de ficção científica, mas um romance com ficção científica”. Talvez se possa dizer o mesmo dos contos do Braulio. Mas tem importância essa distinção? Só para quem acredita na inferioridade (ou superioridade) dos gêneros.
Gênero, no outro sentido, ou as escritoras latino-americanas contemporâneas
Eu me dei conta nesse momento, quando agrupei Bolaño (que adoro), Zambra (curto muito), Fresán (gosto também) e Pals (não tenho paciência), que muitas mulheres autoras latino-americanas fogem desse formato do narrador escritor melancólico e adotam justamente elementos de gênero.
“Kentukis”, da argentina Samantha Schweblin, podia ser um episódio de “Black mirror”, de quando “Black mirror” era bom. “As coisas que perdemos no fogo”, da Mariana Enriquez, também argentina, pode muito bem ser descrito como terror social. E nem sei em qual gênero cabe a Ariana Harwics, mas acho que tem algo de body-terror cronenberguiano nas suas visões de pesadelo da maternidade.
O curso
“A Criação de uma Personagem”. É este o curso que eu vinha anunciando. Vai ser aos sábados de manhã, a partir de 12/10, oito encontros para descobrir como se criam, como se desenvolvem e como se usam (e se descartam) personagem em todo tipo de ficção (cinema, claro, mas também literatura). Curso online, com gravações disponíveis para ver e rever. Para inscrições, vai lá no Sympla. Dúvidas? Just ask :)
E com vocês, direto do túnel do tempo, “Capitão Eléctron contra a ameaça venusiana”, co-dirigido por Dario R. C. Castro, Edmundo G. Barreiros, Humberto Pereira, J. E. Souza Lima e Marcello Monteiro.
Tive a oportunidade de ouvir o Fresán em Pernambuco, num festival A Letra e a Voz, e fui na Flip no ano em que o Alan Pauls foi convidado (não tinha hotel e acampei por lá, como um fã de banda). Sou absolutamente apaixonado pelo Zambra. Seu post reuniu várias de minhas obsessões.