Sérgio, a luz, o escuro e o balde
Uma conversa com o escritor Sérgio Rodrigues sobre as manhas da escrita a partir de pessoas reais e outras manhas literárias
Como se cria uma personagem? Como desenvolvê-la, como fazê-la funcionar? Já estão abertas as inscrições pro meu curso “A Criação de uma Personagem”. Mais detalhes adiante, nesta edição, ou neste link
Sob a bruma dos Gauloises
Não tinha como a conversa não render. Conheço o Sérgio há mais tempo do que nossas vaidades me permitem revelar, mas não vai ser difícil vocês calcularem as décadas. Conheci o Sérgio num grupo de estudos com um professor marxista da ECO/UFRJ, onde nós dois estudávamos.
Éramos meia dúzia de jovens em torno do professor e sua mulher, à mesa de um apartamento no Humaitá que era o mais perto da Europa mítica da esquerda intelectual que qualquer um de nós haveria de chegar. A fumaça dos Gauloises do casal nos encapsulava, enquanto discutíamos, linha a linha, obras do velho Marx, incluindo (de passagem, pois atacávamos obras mais complexas, naturalmente…) o seu “Manifesto Comunista”, publicado pela primeira vez, vejam só a coincidência, aqui em Colônia, onde hoje em dia eu moro.
Falo por mim, mas tenho a impressão de que aquelas noites de terça-feira, que duraram, acredito, mais ou menos um ano, foram muito especiais para todos nós.
Além do bunker intelectual marxista, frequentávamos ambientes mais frívolos. Como o Crepúsculo de Cubatão, de Ronald Biggs, mais tarde a Doctor Smith, bares como o Cochrane e o Pacífico, o cineclube Estação Botafogo e as casas de vários amigos em comum.
Ambos queríamos escrever.
Não falta assunto
Outro dia, falei sobre escrever cinema ou literatura a partir de pessoas reais, e mencionei o livro “A vida futura”, do Sérgio Rodrigues, que tem Machado de Assis e José de Alencar como protagonistas. Achei que o assunto rendia muito mais, e resolvi fazer a primeira entrevista desta newsletter com ele.
Desde seu primeiro livro, “O homem que matou o escritor”, Sérgio trabalha com personagens reais, muitos deles célebres. Eu também escrevi histórias a partir de gente que existe ou existiu (em “O caminho das nuvens” e em “Corações sujos”). Tinha certeza que a conversa ia render. E rendeu.
Acabamos enveredando por um outro tema que já foi assunto por aqui (uma vez aqui e outra vez aqui), e nesse momento falamos tanto de literatura quanto de roteiro: afinal, o quanto um escritor sabe da sua história antes de escrevê-la? o quanto de planejamento se faz? escreve-se, afinal, no escuro, como diz a Margaret Atwood?
A entrevista, afinal
“A vida futura”, conta o Sérgio na entrevista, nasceu durante os horrores e as frustrações da pandemia. Como tantas obras nascidas em períodos sinistros, é uma obra de indiscutível viés cômico. Uma “chutada de balde” por parte do autor.
Outro ponto importante da conversa é o tema da responsabilidade ética do escritor em relação à pessoa real. Os limites e o alcance da liberdade artística.
Isso e mais está na conversa que gravamos e que você pode assistir abaixo…
Outro Sérgio
No fim da conversa, falamos sobre um conto dele de que gosto muitíssimo, “A visita de João Gilberto aos Novos Baianos”, e chegamos a um autor importantíssimo, não só para nós dois, mas para qualquer um que leve a sério literatura: Sérgio Sant’Anna.
Sérgio foi nosso professor na Eco, o que facilitou, sem dúvida, termos chegado muito cedo à sua obra. Para mim, há um espécie de santíssima trindade pagã da literatura brasileira: Sérgio Sant’Anna, Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan.
Sérgio (o Rodrigues), que aliás tem Nelson (também Rodrigues) como personagem em mais de um livro, fala com entusiasmo do Sérgio (o Sant’Anna), de como ele foi provavelmente o maior autor metalinguístico da nossa literatura.
Referências
Falamos de muita coisa na entrevista. Fiz uma lista aqui do que foi citado, para quem se interessar:
Livros do Sérgio Rodrigues
”Submundo”, de Don Delillo
”O anjo pornográfico”, biografia de Nelson Rodrigues por Ruy Castro
”O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, de Sérgio Sant’Anna
Livros de Érico Veríssimo, Machado de Assis e José de Alencar
E o curso sobre personagens?
Começa dia 12 de outubro o meu curso “A criação de uma personagem”. Algumas pessoas têm entrado em contato com dúvidas, vou esclarecer algumas aqui.
“Vou poder trabalhar meus próprios personagens”? Sim e não. Durante os encontros, vou propor exercícios de criação de personagens a partir de gatilhos específicos, e é legal que não sejam ideias que as pessoas já têm. Mas todos esses gatilhos são também técnicas para você aplicar às suas personagens. E mais: ao final do curso, quem quiser vai poder me enviar o perfil de uma personagem, para eu comentar, e aí pode e deve ser algo seu.
“O curso é prático ou teórico?” A resposta anterior meio esclarece isso. É as duas coisas. A prática vai rolar na forma desses exercícios a partir de gatilhos e do perfil enviado ao final. A teoria vai na paralela, o tempo todo, sempre que possível na forma de dicas aplicáveis ao processo de cada um.
Tem outras dúvidas? entra em contato que eu respondo.
E o café?
Uma leitora escreveu comentando - acho que não chegava a ser uma reclamação - que eu estava escrevendo menos daquelas cenas no café, os fragmentos de observações do meu dia alemão, das personagens e situações à minha volta. Verdade. A newsletter, como qualquer texto, às vezes toma um caminho dela própria, à revelia do autor. Mas os cafés vão voltar. Não consigo deixar de olhar à minha volta e escrever sobre o que vejo.
Mais entrevistas?
Gostei muito de gravar essa conversa com o Sérgio e estou pensando em ter outros papos, com autoras e autores que admiro e que possam trazer temas, ideias e reflexões legais pra gente. Não prometo nada, mas acho que vai rolar.
“Ein Filterkaffee” é a newsletter de um escritor e roteirista brasileiro (eu) vivendo na cidade de Colônia, na Alemanha. Se você chegou agora, dê uma olhada no primeiro post
Muito legal esse bate papo. A fina sintonia entre dar espaço à imprevisibidade, e lembrar que há um fio condutor da história.
Que maravilha ter tido o Sérgio Sant`anna como professor hein...bateu uma inveja rs